As sombras dos homens
Essa é a grande vantagem de ter um espaço como este pra registrar alguns fragmentos de nós, de nossas escolhas. Quando a alguns anos, mais adiante, olhamos para trás, eis uma lembrança que poderia já não existir mais. Sim, não existir mais. Nossa mente vai condensando as informações - resumindo os acontecimentos. É assim também na história da humanidade. Muitos afirmam que realmente é o grande que tem valor. Pra mim não. É o detalhe mesmo, estando ele ou não compondo o considerado essencial.
As sombras de Goya. Aluguei o filme com vontade de aprender mais sobre este artista espanhol, mas na verdade, o filme faz ainda mais, nos lembra momentos tristes de um mundo tomado pela ignorância. Como pode tamanha falta de sensibilidade nas almas? Em nome de Deus? Mas que deus é esse que tortura, que explora, que pune, que mata? Nem é somente matar, mas é tirar toda a dignidade, e por anos, que se tornam demorados para passar. Eu realmente não consigo entender. Penso que todos nós, mesmo os ateus, possuem uma alma. Mas aonde está o sentimento daquele que faz tão mal ao outro? Que fator maior é este que destrói completamente a vida de pessoas boas e que eram cheias de vida e vontade de futuro?
Como mencionei no início - esse ir e vir. Eu já assisti a este filme a alguns anos atrás, mas hoje, ele me veio tão forte, tão belo, tão triste. Ah sim, não duvido que pode haver muito do belo na tristeza.
1792 - Madri - A igreja questiona as gravuras de Goya. Diz que são hereges, diabólicas. Tudo porque ele desenha prostitutas como anjos. Mostra a realidade sem enfeites. Reproduz os feitos da igreja da forma como os vê. Sem medo. Sem arrependimentos. Bom, na verdade, ele só tem essa possibilidade porque é o pintor oficial do rei. Duvido que sem esse aparato ele enfrentasse a inquisição. O padre explana, enquanto expõe as gravuras aos membros do clero: "Este homem! É isto como o mundo está nos vendo! Um homem que admira Voltaire - o príncipe das trevas! Aquele que espalha idéias que envenenam a alma das pessoas".
Marcante a parte em que o padre Lorenzo abusa da alma e do corpo da linda e singela Inês. Porque tal situação se repete tanto? Esses homens primitivos! O abuso de poder é repulsivo.
Não importa se a pessoa é bela ou feia, pobre ou rica, saudável ou doente, feliz ou infeliz. O que importa é o seu gesto para o outro. O respeito pela vida. Ninguém tem o direito de fazer maldades. Seja lá qual for. (A não ser em situações totalmente extremas -como em defesa própria) Mas será? Todos podem alegar que seus atos são em defesa! Bom, aí já é outra discussão.
Gostei da cena do jantar em que o anfitrião ao receber o padre Lorenzo foi muito elogiado pela escolha do vinho. A resposta foi bem curiosa. O vinho daquela noite (certamente o mais caro para impressionar o padre), foi envelhecido num navio que deu duas voltas ao mundo. Segundo ele, é preciso movimento constante para alcançar o melhor sabor e aroma.
Terrível a parte da tortura. Não sou contra. Já pensei muito sobre isso, mas quando a justiça não cumpre o seu papel... Eu, quando me coloco na posição de outro que sofre pela estupidez alheia por total falta de amor, não aceitaria. É incrível o poder da arte em mostrar esses fragmentos de forma tão real. Quando fico indignada depois de um filme, minha mãe sempre diz - "mas o que é isso! é só um filme! não devemos levar tão a sério!". Não é verdade. Nós sabemos de tudo. Temos muita informação. A arte é só um retrato. Ninguém escapa da realidade. Há momentos. E aquele que consegue ver e se preocupar apenas consigo mesmo... Que bom! Ótimo! Alguém que vive e deixa viver. Mas tem pessoas que ferem em demasia.
Mas então, durante a tortura, mesmo afirmando com todas as suas forças, ser inocente, do que valeu? Mas eles disseram: "Se você é inocente, Deus te dará forças diante de toda a dor". Uau!
Bom, vamos no diz a sinopse do filme:
Na Espanha do século XVIII, em meio ao radicalismo religioso e à iminente invasão das tropas napoleônicas, o talentoso espanhol Francisco Goya é abertamente celebrado na corte do rei Carlos IV. A adolescente Inés Bilbatua, musa do pintor, é presa sob falsa acusação de heresia. Goya recorre ao influente Frei Lorenzo (Javier Bardem), pretensamente seu amigo, sem saber que está lidando com um dos próprios líderes da inquisição. Baseada em fatos reais, esta superprodução apresenta personagens intensos e os horrores de uma guerra que se refletiram vivamente na pintura de Goya, como testemunhas de uma época muito turbulenta na história.
"Arrependa-se e livre-se dessa cegueira".
É tão triste, mas é aí que está a beleza e a poesia do filme. Nesse ser, nesse homem, capaz do melhor e do pior. Uma lembrança, é isso o que nos espera.
A cena final é fantástica, de uma fotografia impressionante.
O olhar para trás
Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.
Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.
Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.
Alguém gritaria longe: – "Quantas rosas nos deu a primavera!..."
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.
Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?
Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?
E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...
No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.
E que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.
Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de chagas?
Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?
Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!
Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.
Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.
Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...
E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.
Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.
Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.
Alguém gritaria longe: – "Quantas rosas nos deu a primavera!..."
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.
Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?
Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?
E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...
No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.
E que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.
Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de chagas?
Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?
Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!
Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.
Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.
Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...
E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...
Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 1935