POESIAS

Daimon
No dia em que este mundo te fez mundo,
O sol brecou para os planetas:
júbilo.
E deste duro, e foste em tudo ao fundo,
Em nome dessa Lei que te fez nume,

Anda de frente, pois, mas pega um rumo.
É de profeta o que eu disser,
é augúrio:
O tempo nunca desfará o poder
Da viva, ansiada forma que há no ser.
(Goethe)

"A morte é a curva da estrada,
morrer é só não ser visto"
(Fernando Pessoa)

"... le tenias ojeriza a la pureza porque sabias cómo somos de impuros cómo mezclamos sueños y vigilia, cómo nos pesan la razón y el riesgo"
(Mario Benedetti)

Fosse

"Seria
Pior
Não
Mais nem menos
Indiferentemente mas tanto quanto"
(Mallarmé)

"Os homens se iludem se acreditam ser livres".
"subspecie aeternitatis", devemos contemplar nossas próprias vidas sob os olhos da eternidade.
(Nietzsche)

"Tenho os olhos abertos para o mundo e suas sombras me tocam muito.
Meus temas são o lixo da vida".
(Iberê Camargo)

Fernando Pessoa
Primeiro Fausto
Primeiro Tema

MISTÉRIO DO MUNDO

I
Quero fugir ao mistério Para onde fugirei? Ele é a vida e a morte Ó Dor, aonde me irei?
II
O mistério de tudo Aproxima-se tanto do meu ser, Chega aos olhos meus d'alma tão [de] perto, Que me dissolvo em trevas e universo... Em trevas me apavoro escuramente.
III
O perene mistério, que atravessa Como um suspiro céus e corações...
IV
O mistério ruiu sobre a minha alma E soterrou-a... Morro consciente!
V
Acorda, eis o mistério ao pé de ti! E assim pensando riu amargamente, Dentro em mim riu como se chorasse!
VI
Ah, tudo é símbolo e analogia! O vento que passa, a noite que esfria, São outra coisa que a noite e o vento — Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa. A maré vasta, a maré ansiosa, É o eco de outra maré que está Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento. A noite fria, o passar do vento, São sombras de mãos, cujos gestos são A ilusão madre desta ilusão.
VII
Mundo, confranges-me por existir. Tenho-te horror porque te sinto ser E compreendo que te sinto ser Até às fezes da compreensão. Bebi a taça [...] do pensamento Até ao fim; reconhecia pois Vazia, e achei horror. Mas eu bebi-a. Raciocinei até achar verdade, Achei-a e não a entendo. Já se esvai Neste desejo de compreensão, Inalteravelmente, Neste lidar com seres e absolutos, O que em mim, por sentir, me liga à vida E pelo pensamento me faz homem. ............................................................................ ............................................................................ ..........................................E neste orgulho certo Fechado mais ainda e alheado Me vou, do limitado e relativo Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.
VIII
Cidades, com seus comércios...
Tudo é permanentemente estranho, mesmamente Descomunal, no pensamento fundo; Tudo é mistério, tudo é transcendente Na sua complexidade enorme: Um raciocínio visionado e exterior, Uma ordeira misteriosidade — Silêncio interior cheio de som.
IX
Já estão em mim exaustas, Deixando-me transido de terror, Todas as formas de pensar [...] O enigma do universo. Já cheguei A conceber, como requinte extremo Da exausta inteligência, que era Deus... ........................................................................ Já cheguei a aceitar como verdade O que nos dão por ela, e a admitir Uma realidade não real Mas não sonhada, [como o] Deus Cristão. ........................................................................ ...Falhados pensamentos e sistemas Que, por falharem, só mais negro fazem O poder horroroso que os transcende A todos, [sim,] a todos. Oh horror! Oh mistério! Oh existência! ........................................................................
X
O segredo da Busca é que não se acha. Eternos mundos infinitamente, Uns dentro de outros, sem cessar decorrem Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses Neles intercalados e perdidos Nem a nós encontramos no infinito. Tudo é sempre diverso, e sempre adiante De [Deus] e Deuses: essa, a luz incerta Da suprema verdade.
XI
Nos vastos céus estrelados Que estão além da razão, Sob a regência de fados Que ninguém sabe o que são, Ha sistemas infinitos, Sóis centros de mundos seus,
E cada sol é um Deus.
Eternamente excluídos Uns dos outros, cada um É universo.
XII
Num atordoamento e confusão Arde-me a alma, sinto nos meus olhos Um fogo estranho, de compreensão E incompreensão urdido, enorme Agonia e anseio de existência, Horror e dor, [agonia] sem fim!
XIII
Fantasmas sem lugar, que a minha mente Figura no visível, sombras minhas Do diálogo comigo.
XIV
Não, não vos disse ... A essência inatingível Da profusão das coisas, a substância, Furta-se até a si mesma. Se entendesses Neste ou naquele modo o que vos disse, Não o entendesses, que lhe falta o modo Por que se entenda.
XV
Do eterno erro na eterna viagem, O mais que [exprime] na alma que ousa, É sempre nome, sempre linguagem, O véu e capa de uma outra cousa.
Nem que conheças de frente o Deus, Nem que o Eterno te dê a mão, Vês a verdade, rompes os véus, Tens mais caminho que a solidão.
Todos os astros, inda os que brilham No céu sem fundo do mundo interno, São só caminhos que falsos trilham Eternos passos do erro eterno.
Volta a meu seio, que não conhece os deuses, porque os não vê, Volta a meus braços, melhor esquece que tudo só fingir que é.
XVI
Ondas de aspiração [...] Sem mesmo o coração e alma atingir Do vosso sentimento; ondas de pranto, Não vos posso chorar, e em mim subis, Maré imensa, numerosa e surda, Para morrer da praia no limite Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas De algum mar alto aonde a praia seja Um sonho inútil, ou de alguma terra Desconhecida mais que o eterno [amor] De eterno sofrimento, e aonde formas Dos olhos de alma não imaginadas Vogam essências [...] Esquecidas daquilo que chamamos Suspiros, lágrimas, desolação; [Ondas] nas quais não posso visionar Nem dentro em mim, em sonho, [barco] ou ilha, Nem esperança transitória, nem Ilusão nada da desilusão;
Oh, ondas sem brancuras nem asperezas, Mas redondas, como óleos, e silentes No vosso intérmino e total rumor — Oh, ondas das almas, decaí em lago Ou levantai-vos ásperas e brancas Com o sussurro ácido da esperança ... Erguei em tempestades a minha alma! ...................................................................... .................................................. Não haverá,
Além da morte e da imortalidade, Qualquer coisa maior? Ah, deve haver Além da vida e morte, ser, não ser, Um inominável supertranscendente, Eterno incógnito e incognoscível!
Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo. Pr'a que pensar, se há de parar aqui O curto vôo do entendimento? Mais além! Pensamento, mais além!
XVII
Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo. Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse Alguns há, outros universos, outras Formas do Ser com outros tempos, 'spaços E outras vidas diversas desta vida...
O espírito é outra estrela. . . O Deus pensável É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos De outras essências de Realidade ...
E eu precipito-me no abismo, e fico Em mim... E nunca desço ... E fecho os olhos E sonho — e acordo para a Natureza Assim eu volto a mim e à Vida .......................................................................... Deus a si próprio não se compreende. Sua origem é mais divina que ele, E ele não tem a origem que as palavras Pensam fazer pensar... ......................................................................... O absatrato Ser [em sua] abstrata idéia Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna. Eu e o Mistério — face a face...
XVIII
No meu abismo medonho Se despenha mudamente A catarata de sonho Do mundo eterno e presente. Formas e idéias eu bebo, E o mistério e horror do mundo Silentemente recebo No meu abismo profundo.
O Ser em si nem é o nome Do meu ser inenarrável; No meu mudo Maëlstrom O grande mundo inestável Como um suspiro se apaga E um silêncio mais que infindo Acolhe o acorrer do vago Que em mim se vai esvaindo.
Por mais que o Ser, que transcende Criatura e Criador, Se esse Ser ninguém entende Ele, a mim e ao meu horror, Menos. Vida, pensamento, Tudo o que nem se adivinha, É tudo como um momento Numa eternidade minha. .................................................................
XIX
................................................. Abre-me o sonho Para a loucura a tenebrosa porta, Que a treva é menos negra que esta luz.
O terror desvaria-me, o terror De me sentir viver e ter o mundo Sonhado a laços de compreensão Na minha alma gelada.
XX
A qualquer modo todo escuridão Eu sou supremo. Sou o Cristo negro. O que não crê, nem ama — o que só sabe O mistério tornado carne.
Há um orgulho atro que me diz Que Sou Deus inconscienciando-me Para humano; sou mais real que o mundo, Por isso odeio-lhe a existência enorme, O seu amontoar de coisas vistas. Como um santo devoto Odeio o mundo, porque o que eu sou E que não sei sentir que sou, conhece-o Por não real e não ali. Por isso odeio-o — Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira!
XXI
Sou a Consciência em ódio ao inconsciente, Sou um símbolo incarnado em dor e ódio, Pedaço de alma de possível Deus Arremessado para o mundo Com a saudade pávida da pátria... .....................................................................
Ó sistema mentido do universo, Estrelas nadas, sóis irreais, Oh, com que ódio carnal e estonteante Meu ser de desterrado vos odeia! Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro, Pregado na cruz ígnea de mim mesmo. Sou o saber que ignora, Sou a insônia da dor e do pensar ...................................................................
XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos, Os olhos da minha alma [...] (Disso a que alma eu chamo) Só sei de duas coisas, nelas absorto Profundamente: eu e o universo, O universo e o mistério e eu sentindo O universo e o mistério, apagados Humanidade, vida, amor, riqueza. Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais, Eu ou tu? Tu que vives inconsciente, Ignorando este horror que é existir, Ser, perante o [profundo] pensamento Que o não resolve em compreensão, tu Ou eu, que analisando e discorrendo E penetrando [...] nas essências, Cada vez sinto mais desordenado Meu pensamento louco e sucumbido. Cada vez sinto mais como se eu, Sonhando menos, consciência alerta Fosse apenas sonhando mais profundo .......................................................................
XXIII
.................................................. Ah, que diversidade, E tudo sendo. O mistério do mundo, O íntimo, horroroso, desolado, Verdadeiro mistério da existência, Consiste em haver esse mistério. .......................................................................
XXIV
Essa simplicidade d'alma Possuída não só dos inocentes Mas até dos viciosos, criminosos... ....................................................................... .......................................... essa simplicidade Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso Que o pensamento friamente ocupa.
XXV
Tremo de medo: Eis o segredo aberto. Além de ti Nada há, decerto, Nem pode haver Além de ti, Que [só] tens essência Nem tens existência E te chamas [...] Ser.
XXVI
Mais que a existência É um mistério o existir, o ser, o haver Um ser, uma existência, um existir — Um qualquer, que não este, por ser este — Este é o problema que perturba mais. O que é existir — não nós ou o mundo Mas existir em si?
XXVII
Não é a dor de já não poder crer Que m'oprime, nem a de não saber, Mas apenas [e mais] completamente o horror De ter visto o mistério frente a frente, De tê-lo visto e compreendido em toda A sua infinidade de mistério. É isto que me alheia, que me [traz] Sempre mostrado em mim como um terror E maior terror há-o?
XXVIII
Para mim ser é admirar-me de estar sendo.
XXIX
Há entre mim e o real um véu A própria concepção impenetrável. Não me concebo amando, combatendo, Vivendo com os outros. Há, em mim, Uma impossibilidade de existir De que [abdiquei], vivendo.
XXX
Tornei minha alma exterior a mim.
XXXI
Tarde! Não poder Adivinhar o teu segredo E o teu mistério ilúcido. Ignorar Esta emoção, Vaga desesperança quase amarga, Da sensação que dás. .....................................................................
XXXII
..................................................................... Qu'importa? Tudo é o mesmo. A mim quer seja Manhã inda d'orvalho arrepiada, Dia, ligeiro ao sol, pesado em nuvens, A tarde, A noite misteriosa, Tudo, se nele penso, só me amarga E me angustia. .....................................................................
XXXIII
Acordado, abro os olhos. Vivo! Sou vivo ainda! Torno a ver-te, Pálida luz, silente luz da tarde, Que ora me [enches] de um cálido horror! Onde estou? Onde estive? Ferve em mim, Numa quietação indefinida, Um eco de tumultos e de sombras E uma coorte como de fantasmas [Gritantes]. E luzes, cantos, gritos, Desejos, lágrimas, chamas e corpos, Num referver [tumultuoso] e misturado, Numa esvaída confusão noturna — Como tendo piedade de deixar-me — Sinto passar em mim, como visões. Nem com esforço recordar-me posso Se são fantasmas ou vagas lembranças; Não me lembro de vida alguma minha E o necessário esforço, desejado P'ra recordar-me, não o posso ter. ..................................................................... Acabar. Nem desejo nem espero Nem temo, n'apatia do meu ser. Para que pois viver? Quero a morte, E ao sentir os seus passos Alegremente e apagadamente Me voltarei lento para o seu lado, Deixando enfim cair sobre o meu braço Minha cabeça, olhos cerrados, quentes Do choro vago já meio esquecido. Mas onde estou? Que casa é esta? Quarto Rude, simples — não sei, não tenho força Para observar — quarto cheio da luz Escura e demorada, que na tarde Outrora eu... Mas que importa? A luz é tudo. Eu conheço-a.
XXXIV
Basta ser breve e transitória a vida Para ser sonho. A mim, como a quem sonha, E escuramente pesa a certa mágoa De ter que despertar — a mim, a morte, Mais como o horror de me tirar o sonho E dar-me a realidade, me apavora, Que como morte. Quantas vezes [quantas], Em sonhos vazios conscientemente Imerso, me não pesa o ter que ver A realidade e o dia! Sim, este mundo com seu céu e terra, Com seus mares e rios e montanhas, Com suas árvores, aves, bichos, homens, Com o que o homem, com translata arte, De qualquer construção divina, fez — Casas, cidades, coisas, modas [...] —, Este mundo, que [nunca] reconheço, Por sonho amo, e por ser sonho o [quero] Ou [tenho] que deixá-lo e ver verdade, — Me toma a gorja, com horror de negro, O pensamento da hora inevitável, E a verdade da morte me confrange. Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente Alheio ao verdadeiro ser do mundo, Viver sempre este sonho que é a vida! Expulso embora da divina essência, Ficção fingindo, vã mentira eterna, Alma-sonho, que eu nunca despertasse! Suave me é o sonho, e a vida [...] é sonho. Temo a verdade e a verdadeira vida. Quantas vezes, pesada a vida, busco No seio maternal da noite e do erro, O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho Uma perfeita vida me parece [...] ..., e porventura Porque depressa passa. E assim é a vida.
XXXV
E o sentimento de que a vida passa E o senti-la passar Toma em mim tal intensidade, De desolado e confrangido horror, Que a esse próprio horror, horror eu tenho Por ele e por senti-lo, E por senti-lo como tal.
XXXVI
Aborreço-me da possibilidade De vida eterna; o tédio De viver sempre deve ser imenso. Talvez o infinito seja isso... Já o tédio de o pensar é horroroso.