O homem contemporâneo

Gostei muito desse comentário de Rubens Conte sobre o Fronteiras de segunda em ZH:


Afirmo que desde guri fui impelido ao direito de pensar livremente. Primeiramente livrei-me da igreja, em seguida me libertei da idéia de Deus, e por fim mantive-me convenientemente subjugado ao sistema, pois concluí que apesar de ser um modelo absurdo, é tão disseminado que a sobrevivência fora dele tornar-se-ia impossível.

Como esclarecimento, caso alguém ainda ignore, desde a muito tempo existem sistemas que regem o mundo, sistemas que não nasceram junto com o mundo ou com a civilização humana. Atualmente estamos contidos num destes micro-universos artificiais que pode ser eficientemente denominado de Democracia Capitalista. Um modo com leis próprias, mas que não são necessariamente verdades absolutas.

Não beira o absurdo um sistema que te consome de 12 a 14 horas por dia no trâmite do trabalho? Para que ? Para viajar em férias uma vez por ano ? Para ambicionar trocar o modelo do seu “meio de transporte” todo ano como se isso o fizesse melhor que os outros ? Para ter como força motriz a vontade de provar aos outros que é feliz sem sequer estar pessoalmente certo de que o é ? Gastando o tempo e a energia da sua vida para comprar uma linda casa nova em uma centenas de prestações, bem o qual não vai usufruir devido ao cansaço proposto pelo seu ritmo de vida desumano ? Não raramente encontrando uma lacuna impreenchível na sua vida, espaço este atribuído pelos fanáticos religiosos a ausência de Deus, mas que de fato é apenas a ausência de um motivo sólido para permanecer vivo, razão que o ser humano só alcança através da própria habilidade de raciocinar e por nenhum outro meio! Para gastar os poucos momentos que sobram sentado, extenuado e imbecil em frente a uma TV assistindo filmes e novelas que propõem artificialmente as emoções que a sua vida vazia não contém? Isso para mim não passa de escravidão disfarçada.

Assim sendo, eu assumo que após ter descoberto o quão incoerente e servil é o nosso “modus operandi”, dispendi boa parte da minha vida elaborando um sistema existencial com valores alternativos que me propusessem, além de permanecer vivo; rir deste absurdo. Dessa forma enquanto ria, ou contava uma piada, fazia uma graça, ou quando agia como um leviano, um bobo e era julgado como tal, eu estava desprezando os infames que faziam apologia, que doavam-se completamente, tratando com distinção e seriedade cômicas os trâmites estúpidos que gerem esse sistema ridículo ao qual estamos subjugados. Fazia isso ironicamente, pois se o fizesse explicitamente, o risco de ser incinerado era eminente.

Devo dizer-lhes, o quão difícil é para um indivíduo como eu manter-se mentalmente são e livre numa estrutura social a qual julga contrária ao bom senso, crendo que o disparate vige como verdade, mantendo a maioria esmagadora da sociedade submissa e levianamente satisfeita. Desta forma, o meio que escolhi para sobreviver foi este, escondido atrás da máscara de Loki.

É coerente então que os meus preceitos pessoais de sucesso e satisfação vão de encontro aos preceitos tidos como verdadeiros nesta sociedade. Sendo assim, se o individuo é completamente satisfeito, crendo-se bem sucedido e certo de que viveu com plenitude, sendo esta plenitude medida pelo dinheiro que acumulou ou pelo status quo que atingiu dentro do sistema, ou ainda pelos prazeres superficiais aos quais teve acesso, eu proponho que este é o pior dos ignorantes e o mais nocivo dos indivíduos humanos, pois satisfazer-se absolutamente ao alcançar as metas essencialmente vazias que o sistema propõem, é ser definitivamente pior do que elas.

Ainda discorrendo sobre a sobrevivência neste sistema, eu gastei algum tempo buscando explicações e acabei naturalmente percebendo alguns erros epistemológicos, que propõem em algum prazo, que o sistema torne-se insustentável e sucumba. Os enumerarei a seguir:

1 – Antropocentrismo Divino – O homem conceitua-se como privilegiado por um Deus, o centro do interesse divino. Premissa que incentivou o desiquilíbrio e a conseqüente devastação do habitat.

2 – Monolitismo intelectual – Pensamento vigente que pressupõem que o domínio intelectual numa área do conhecimento humano propõem o mesmo domínio em qualquer outra esfera do conhecimento. Ou segundo Aldous Huxley: “Uma das coisas mais difíceis de se ter em mente, é que o valor de um homem numa esfera determinada não constitui uma garantia de seu valor em outra esfera. A matemática de Newton não prova nada em favor da sua teologia”. Esta falta da habilidade de “análise em perspectiva” do individuo humano, propõem que ele não compreenda em plenitude o turbilhão de acontecimentos que o assola. Suas conclusões são tomadas com base em fatores analisados isoladamente, nunca na ponderação dos diversos fenômenos essencialmente correlatos que de fato compõem o evento complexo que é a existência humana.

3 - Subserviência religiosa - Modo de vida que valoriza em primeira ordem o dogma em detrimento da curiosidade científica, o medo do desconhecido maior que o amor ao conhecimento.

Déficit intelectual - Incapacidade generalizada de pensamento livre, como se a espécie humana fosse intelectualmente atrasada ou incapaz. Um exemplo clássico deste déficit é a tendência do homem a agir emocionalmente, apegando-se a eventos isolados, permanecendo incapaz de perceber e agir em eventos macroscópicos: Ex. Eu luto apaixonadamente para salvar aquele leão do zoológico que seria sacrificado, mas não preocupo-me com o problema muito maior da eminente extinção dos leões, ocasionada pelas alterações no clima, que são frutos da minha ação nociva como espécie. Ou seja, projeta-se tanta energia na ação improfícua de salvar um indivíduo, mas nem sequer percebe-se que o modo de vida negligente da nossa sociedade é diretamente responsável pelo avanço da destruição do habitat daquela e de todas as outras espécies.

4 – Preguiça mental - Tendência ao aceite das respostas fáceis. Paixão pelo ocultismo, Submissão intelectual. Submissão religiosa. Subserviência política. Algo como a satisfação plena do glutão sorridente, tentando irresponsavelmente alcançar a última guloseima que pende a beira do abismo.

Existência orientada ao conforto e ao consumismo - O fato de estar contido num sistema que propõem o consumo, fez o homem acreditar que este é o único universo possível, restringindo-o a este universo.

Arrogância acadêmica - Crer ter-se atingido o ápice das potencialidades humanas devido ao seu histórico acadêmico, ignorante de que a estrutura acadêmica vigente, propõem apenas a formação de máquinas de trabalhar e não de espíritos críticos capazes de compreender o sistema aonde estão contidos.

5 – Um sistema que exige crescimento contínuo – O capitalismo possuí a característica intrínseca de exigir crescimento ilimitado. Ou seja, ou cresce, ou entra em recessão. Dessa forma, num universo fisicamente limitado, é óbvio que em algum momento o sistema exija tornar-se maior que o meio físico que o contém, gerando uma anomalia indissolúvel.

6 – O atributo inato do ser humano de não conseguir pensar de maneira abstrata enquanto suas necessidades básicas ou imediatas não são satisfeitas. Ex – O indivíduo pensa que o que implica na sua infelicidade é não possuir aquele automóvel, que resultaria na melhora da sua auto-estima e conseqüentemente no seu sucesso com as mulheres. Dessa forma, enquanto não possuir o automóvel, o individuo manterá sua atenção totalmente voltada a este único fim material, mesmo que não consiga atingi-lo em anos, de modo que qualquer outra possibilidade no âmbito das idéias metafísicas e da auto compreensão não germinará.

No fim das contas tenho plena certeza que as pessoas não entenderiam nada do que eu tentei dizer aqui, e pior, me taxariam de louco, mal agradecido e sociopata. Estes eu tenho convicção de que estão inclusos em pelo menos meia dúzia dos pecados citados acima, e essa associação explica facilmente o motivo do mundo estar aonde está.

Como último alento, me resigno a sugerir, sem outorgar a mim qualquer valor especial ou distinção positiva, muito ao contrário, por entender que esta habilidade que propõem o que creio ser uma percepção em outra sintonia, tende mais a maldição do que a dádiva, que caso alguém tenha curiosidade sobre esta perspectiva tão dissonante das multidões, ela é facilmente encontrada no pensamento dos anti-heróis dos livros de autores como Albert Camus ( O estrangeiro), Anton Tchekhov (enfermaria número 6) , Herman Hesse (O lobo da estepe), Maugan (Servidão Humana) e Huxley (Admirável Mundo Novo, Contraponto), em cujas obras eu mesmo encontrei alento e companhia para minha solidão.

E finalmente faço a minha única conjectura. Eu estou convencido que a nossa saga termina aqui, tenho plena convicção de que a nossa civilização, influenciada pela nossa coleção de erros sistêmicos, não se sustentará, e no fim das contas desapareceremos estupidamente, justificando a ausência de clareza da nossa percepção, tendo a nossa magnífica sociedade nascido e morrido a míngua e cega num mundo ilusório, similar aquele que os enclausurados percebiam nas sombras do mito de Platão.