2009
Um filme impactante.
Destaque para a crítica de Gustavo Pavan - em Cinematicabr.
Está certo que Lars Von Trier é mesmo um dos maiores realizadores da safra atual. Não bastasse o próprio diretor se intitular dessa maneira, eu também vou me render, mais uma vez, ao seu brilhantismo. Cara difícil, antiamericano, simpatizante de práticas nazistas, como ele próprio declarou em Cannes no ano passado, gerando grande polêmica ao redor do mundo, Von Trier consegue fazer de seus filmes uma grande aula de roteiro, direção, fotografia e contemplação.
Criador do Dogma 95, o diretor tem em seu currículo filmes como Ondas do Destino (1996), Dogville (2003) e, o genial e mais recente, Melancolia (2011). A mais polêmica de suas realizações talvez seja mesmo Anticristo (Antichrist, Dinamarca, Alemanha, França, Itália, Polônia. 2009), como disse Roger Ebert: “um garfo no olho”. O que Anticristo gera nos espectadores é algo parecido com uma mistura de repulsa e sadismo, não sobrando espaço para uma única respiração.
Dividindo a maioria das opiniões, Anticristo deixa um rastro arrasador, independente da aceitação do filme. Se você gosta, se torna um apreciador imagético e sensato da obra de Von Trier, se não gosta, a experiência foi realmente dura. Filme forte, trágico, que necessita de uma boa dose de estômago e concentração pra ser levado. Aliás, ser levado pelo filme é o grande trunfo de Von Trier, que consegue construir um ritmo essencial à colaboração do espectador, já que a história, se não fosse o diretor, seria facilmente abandonada por quem assiste: a loucura não tem limite.
O filme é dividido em quatro capítulos, um prólogo e um epílogo. Logo de cara, Von Trier nos apresenta uma cena compatível ao seu brilhantismo. Em preto e branco, o prólogo de Von Trier dá margem aos acontecimentos que vão seguir o trágico início. Numa câmera lenta excepcional, o diretor coloca o casal protagonista, interpretado por Charlotte Gainsbourg (Palma de Ouro de Melhor Atriz em Cannes pelo papel) e Willem Dafoe, numa cena de sexo explícito, enquanto isso, o filho, ainda muito bebê, sai do berço, abre a janela e se joga do prédio. Como é do feitio de Von Trier, o momento da morte do bebê coincide exatamente com ápice do orgasmo da mulher, colocando em oposição o lado vítima e o lado culpada que se chocaram durante toda a película.
A todo o momento, Von Trier coloca as coisas em oposição, hora aproximando, hora igualando. Na medida em que a vida das personagens vai perdendo a cor, com o caos se instalando fervorosamente no cotidiano, o filme, ao contrário, vai ganhando uma fórmula imagética que plastifica todo o sentimento, a dor e as questões que envolvem a obra. A fotografia, belissimamente sincera, liga os pontos da dor e da realidade, movendo o espectador a uma proliferação de sensações até então inimagináveis. Descobrimo-nos sádicos, dramáticos, crentes e animais. Os animais é outro ponto chave dessa história, já que a raposa, o corvo, o lobo e o cervo dão o tom animalesco ao personagem de Willem Dafoe, incutindo a ideia de que a sua ciência (perdedora) e seu propósito (egoísta) não surtem efeito graças a sua semelhança com as coisas mundanas. O ar que tu respiras, o que comes e o que vestes não te faz diferente de nenhum ser. E aí que entra a ideia maior de Von Trier, diminuir o ser humano a sua mais temida face: o animal.
A floresta, ironicamente chamada de Éden, colocará os personagens frente a eles mesmos, ao nojo interno de si e do outro, a ligação entre dor e passagem, dor e momento. O Homem encontra sua pior face e tenta destruí-la, infligir dor, matar todas as suas células que possam dar uma posição saudável, de vida. E, acredite, essa dor não é sentida pela mãe, a perda do filho é a válvula de escape para o encontro do seu ser com a natureza, aquela que vai torturar, manipular e matar.
O trabalho dos atores é realmente sensacional. Os personagens não perdem nada em relação à complexidade de seus caminhos. O marido, que hora misógino, tentador do controle sobre a mulher, traça sabidos momentos de tortura sobre as feridas do lado mãe, como o sexo quando entra como fator de liberação dos sentimentos, enquanto ela, enlouquecida, só vê na satisfação da culpa o caminho da glória final.
Deus pode não ter nada a ver com a história... ou ter tudo a ver com ela.