O Lobo da Estepe - parte II

Para terminar com o nosso Harry, deixo ainda mais uma parte de suas reflexões (pra mim, uma das mais belas de todo o livro). Apesar de parecer que nosso personagem é um ser aflito e desiludido, na verdade são reflexões de alguém que sabe que pode mais. Segundo suas próprias palavras, ao contrário do que se pensa ao primeiro olhar leviano, trata-se de um ser que crê.
Profundo, melancólico e imensamente poético. Certamente Harry é muito mais interessante do que Philip Carey de Servidão Humana. Este último vive mais como nós, na condição da escravidão metafísica da vida e seus mistérios. É mais descritivo em detalhes, histórias e situações amorosas, enquanto que Harry é pura essência. Tanto é que ele pode ser o único em muitos dentro de sua própria criação.     


Não posso negar que após cada uma dessas comoções de minha vida no final sempre me restava algum proveito, um pouco mais de liberdade, de espiritualidade, de profundidade, mas também de isolamento, de incompreensão, de frigidez. Visto do ângulo burguês, minha vida fora, de uma a outra dessas comoções, uma permanente descida, um afastamento cada vez maior do normal, do permitido, do são.
Ao longo de alguns anos fiquei sem trabalho, sem família, sem lar; estava à margem de qualquer grupo social, sozinho, sem amor de ninguém; inspirava suspeita à muitos, estava em contínuo e amargo conflito com a opinião e a moral públicas, e embora continuasse vivendo na esfera burguesa, era, todavia, por minha maneira de pensar e de sentir, um estranho nesse mundo. Religião e pátria, família e Estado careciam de significação para mim e já nada me importava; a presunção da ciência, das profissões, das artes, me causava asco; meus pontos de vista, meu gosto, todo o meu pensamento, com o que em outras épocas brilhava como homem bem conceituado, tudo estava agora abandonado e embrutecido e causava suspeita a muita gente. Se em todas as minhas dolorosas transmutações adquirira algo de indizível e imponderável, caro tivera de pagá-lo, e em cada uma delas minha vida se tornara mais dura, mais difícil, mais solitária e perigosa. Na verdade, não tinha nenhum motivo para desejar a continuação desse caminho que me conduzia a atmosfera cada vez mais rarefeitas, semelhantes àquela fumaça da Canção de outono, de Nietzsche.
Ah, sim, já conhecia esses acontecimentos, essas transformações que o destino reserva aos seus filhos diletos, aos mais difíceis de contentar; conhecia-os demasiadamente bem. Conhecia-os como um caçador diligente mas sem sorte conhece as etapas de uma caçada, como um velho jogador da Bolsa pode conhecer as etapas da especulação, do lucro, da insegurança, da insolvência, da bancarrota. Teria de voltar a sofrer tudo aquilo? Todo esse tormento, toda essa extraviada necessidade, todos esses olhares de vileza e pouco valor do próprio eu, toda essa terrível angústia diante do sucumbir, todo esse temor da morte? Não era mais prudente e simples impedir a repetição de tanta dor e sair de cena? 
Certamente, era mais simples e razoável. Fosse verdadeiro ou não o que diz o livrinho do Lobo da Estepe sobre o suicida, nada poderia impedir-me o prazer de matar-me com a ajuda do gás, da navalha ou da pistola, a repetição de um processo cujas amargas consequencias já tivera ocasião de experimentar tantas vezes e com tanta intensidade. Não, com todos os demônios, não havia nenhuma força no mundo que pudesse exigir de mim novamente o encontro com os horrores da morte, o ter de passar outra vez por uma nova conformação, uma nova encarnação, cujo fim não seriam já a paz e o descanso, mas sempre uma nova autoconformação!
Embora o suicídio fosse estúpido, covarde e mesquinho; embora fosse uma saída de emergência difamante e vergonhosa para fugir ao torvelinho de dores, qualquer saída, ainda a mais ignominiosa, seria de desejar-se intimamente; não se tratava de nenhum drama de nobreza ou de heroísmo, aqui estaria eu diante da singela escolha entre uma dor passageira e leve e um sofrimento infinito e indizível. Não raro em minha vida - difícil e insensata - fui como o nobre Dom Quixote, preferindo a honra à comodidade e o heroísmo à razão! Mas já era tempo de acabar com isso!