Um filme de Tony Kaye.
Emocionante.
Comentário do Cineplayers:
“E eu nunca me senti tão imerso em uma pessoa ao mesmo tempo em que estou tão desapegado de mim mesmo e tão presente no mundo”.
(Albert Camus)
Com essa bela frase se inicia aquele que pode ser considerado o maior monumento cinematográfico do século XXI até então. Não, não se engane Detachment não é um filme comum que logo cairá no esquecimento (ao menos não deveria). Trata-se, na verdade, de uma obra que carrega uma densidade narrativa ainda não experimentada nesse século por nenhuma outra obra audiovisual, nem mesmo pelo exuberante As Invasões Bárbaras (2003).
A frase do filósofo Albert Camus acima destacada não só é uma bela frase, analisada de forma isolada, mas também serve como vetor interpretativo do filme. Apesar da abordagem acerca da espinhosa temática da educação, me arrisco a dizer que a obra transcende a essa fundamental discussão, se transformando em um grande ensaio sobre as relações humanas, no melhor estilo Magnólia (1999).
E é isso, inclusive, que faz do filme uma experiência única, pois a crise do ensino não é vista como um problema isolado da sociedade, mas como um resultado de uma questão muito mais tormentosa: a crise das relações humanas.
A história se inicia com ex-alunos e ex-professores dando depoimentos sobre suas impressões sobre o ambiente educacional. O que sugere que o filme vai adotar uma postura de um documentário. No entanto, junto com esses depoimentos “reais” aparecem também falas do personagem principal, Henry (Adrien Brody), com a barba malfeita, abatido (como se fosse num momento posterior ao que a história se passa), colocando as suas ideias sobre o tema, deixando o seu depoimento “fictício”. Com isso, fica claro que qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência e a linha que separa os dois planos é bastante tênue (reforçado pelo modelo de filmagem documental de Tony Kaye).
O roteiro de Carl Lund (um ex-professor de escola pública) também não deixa dúvidas da pretensão argumentativa do filme. Sem eufemismos, somos transportados para o caótico ambiente de trabalho de Henry, um professor substituto que é enviado a um colégio cujo clima não é nada amistoso.
Professores não são respeitados pelos alunos, são ameaçado e agredidos pelos discentes e coagidos pelos pais – exatamente como a realidade das escolas brasileiras retratada no documentário Pro Dia Nascer Feliz (2006). O cenário é devastador, com diálogos pesados, cortantes, não ficando atrás de nenhum filme de Samuel Füller (O Beijo Amargo, Cão Branco) nesse sentido.
Para criar tal atmosfera, o afiado elenco tem um papel decisivo. Os excelentes coadjuvantes possuem uma importância central na narrativa, ilustrando vários exemplos de indivíduos perdidos, sem saber como lidar com os dramas educacionais.
Mr. Charles Seaboldt (James Caan), por exemplo, utiliza-se do humor, protagonizando cenas estranhamente engraçadas de repreensão aos alunos. No entanto, para manter-se sereno diante de tal contexto, recorre diariamente a antidepressivos, ficando claro, assim, que sua tranquilidade é muito mais um resultado de uma anestesia do que de uma paz de espírito propriamente dita.
Já a Dra. Doris Parker (Lucy Liu), a psicóloga do colégio, tenta se envolver mais com os alunos, orienta-los, mas esse não é um processo fácil, sobretudo quando os próprios alunos não valorizam suas orientações. Nessa cadeia de indiferença, pessoas como ela tendem a não suportar tal pressão e a cena em que ela finalmente desabafa em frente a uma aluna é uma demonstração disto (aliás, uma das sequências mais poderosas do filme).
A diretora, Carol Dearden (Marcia Gay Harden), é a pura encarnação do fracasso do sistema educacional. Uma mulher que outrora tivera uma ideologia, que acreditava em sua função, mas que, agora, tenta a todo o custo melhorar os números de sua escola, apenas, por razões profissionais.
É nesse cenário aterrador, reforçado pela direção frenética de Kaye, com ampla utilização de câmera angular de mão e com incômodos ângulos fechados, que logo nos deparamos com primeira aula de Henry.
O professor de inglês pede aos alunos que façam uma redação para que ele os compreenda melhor. Mas, logo no início, fica claro que não será fácil manter qualquer tipo de ordem em sala de aula. Um aluno é, rapidamente expulso por ofender a colega (Betty Kaye). Após isso, o professor tem sua maleta arremessada por outro aluno que não teve a sua resposta atendida. A claustrofobia é insuportável, o ambiente é anaeróbico (na feliz expressão de Victor Bruno cunhada originalmente para o cinema de Fincher) e o choque parece iminente. No entanto, é nessa situação limite que Henry demonstra que não é um professor comum ao dizer:
- Aquela bolsa não tem sentimento. Está vazia. Também não tenho sentimento que você possa ferir. OK? Eu entendo que você esteja com raiva.(...) Você não tem razão para agir comigo assim, pois sou uma das poucas pessoas aqui que tenta lhe dar uma oportunidade.
O clima então se ameniza, o aluno volta para a sua carteira. Mas há algo diferente no ar. O aluno tem a impressão que o professor realmente quer ouvi-lo, que ele se importa com o que ele tem a dizer, que ele está lhe dando uma oportunidade.
A postura de Henry é fundamental para compreender um tema fundamental de Detachment: os reflexos nefastos da aplicação da metodologia de ensino tradicional.
Muitos não sabem, mas o atual modelo de ensino baseia-se em um ideário do século XVII, baseada didática Magna Carta de Comênio, cujo principal lema era "Ensinar tudo a todos" da maneira mais rápida e eficiente. É o que o pedagogo Paulo Freire (FREIRE, 1987) considera como uma pedagogia do oprimido, sendo o ensino tradicional um perpetuador de uma situação de opressão, em que ocorre um processo de desumanização do aluno através de um ensino antidialógico. Tal ensino se baseia em uma concepção bancária da educação, na qual os alunos são vistos como receptáculos vazios, a serem preenchidos pelo professor.
Esse modelo de ensino também se apoia na ideia de alienação da ignorância, ou seja, o professor tem a falsa impressão de que são grandes especialistas sobre o assunto e que os alunos são completos ignorantes sobre o tema (daí a expressão, a ignorância está sempre no outro) não havendo necessidade de se estabelecer um diálogo em sala de aula.
O resultado de tudo isso é um sufocamento da capacidade de reflexão do aluno e a sua desumanização. Um estímulo à reprodução irrefletida, ao não pensar, ao não problematizar – sobre o tema, aliás, há o interessante documentário La educación prohibida (2012) – bem como a descrença do aluno na utilidade do professor (sobretudo na era da internet em que os professores não possuem mais o monopólio da informação considerando a ampla oferta de conhecimento através da rede mundial de computadores).
Henry, no entanto, adota em seu primeiro encontro uma postura dialogal, nos moldes defendidos por Freire e, por isso, conquista a turma. Aqui há quem critique o filme acerca da velocidade em que tal conquista se dá, como o excelente crítico Victor Bruno. No entanto, essa ligeireza pode ser explicada pela mudança de paradigma que o professor substituto representa. Desde o primeiro minuto Henry quebra a lógica de verticalidade impositiva e procura uma postura de conhecimento coletivizado.
Há outra explicação para esse suposto “erro” que seria explicado na tônica frenética do filme, onde as informações são bombardeadas incessantemente na tela (inclusive com a utilização de live action), ligando-se assim ao recente A rede social(2010), que tenta se aproximar da linguagem da juventude pós-democratização da internet, marcada por uma lógica de texto e hipertexto, links, textos coletivos, escrita marcada pela oralidade, entre outros atributos, não tendo tempo para maiores digressões. Aliás, essa dinâmica da obra de Kaye, pode ser considerada mais uma crítica à metodologia tradicional de ensino, que desconsidera por completo as mudanças perpetradas pela expansão da internet na linguagem dos jovens, ao continuar se valendo de procedimentos nos moldes medievais.
Independente disto, a mensagem da obra é clara no sentido de que a ultrapassada forma de ensino tradicional que desconsidera as particularidades dos alunos e os trata como “apenas mais um tijolo no muro” (como na música de Pink Floyd) deve ser superada. Para quem tem dúvidas acerca desse ponto de vista basta observar melhor a metáfora final do filme.
Se o leitor ainda não assistiu a obra em tela, provavelmente, deve estar pensando que se trata de mais um daqueles filmes sobre professores repletos de clichês. Ledo engano. Detachment não é uma obra de soluções fáceis e Henry está muito longe de ser caracterizado como um super-herói. Mas para compreender melhor isso, precisamos descobrir como se dá a vida extra-classe do professor.
Aqui retomamos o início do presente ensaio com a ideia de que Detachment, para analisar a crise do ensino, adentra em uma poderosa análise das relações humanas.
Para compreendermos melhor isso, a obra nos mostra que o protagonista é um homem assombrado pelo seu passado. Assim, ao longo da projeção aparecem diversos flashes da memória deste sofrido personagem, que revelam que há na história de vida desse homem de aparência tranquila, terríveis dramas familiares. Aqui, aliás, Kaye se vale de uma solução genial, inserindo as memórias de forma abrupta, sem parar a narrativa, de forma análoga a que Ferrara fez em O Enigma do Poder (1998). Kaye ainda dá a fotografia um tom turvo, desfocado, tentando se aproximar ao máximo da sensação de como se dá, na consciência, o processo de reconstituição das memórias.
Simultâneo as lembranças descritas acima (a narrativa não dá descanso em nenhum momento) a vida do nosso personagem principal é invadida por três mulheres que se apaixonarão por ele: uma professora, uma aluna e uma jovem prostituta.
A professora é a representação do elemento afetivo, fundamental na vida de todos, sobretudo na formação da autoconfiança, Porém, para um homem marcado por um passado problemático no que se refere à figura materna, tais tipos de relacionamentos são muito difíceis (interessante, nesse sentido, as considerações do psicólogo Winnicot acerca da forma como a relação mãe-filho influencia nas futuras relações afetivas da criança). Contribui ainda nesse cenário de fracasso emocional, o grau de envolvimento de Henry com o seu trabalho e com seus alunos.
Há também uma sofrida aluna (Betty Kaye), que é diariamente agredida verbalmente por seus colegas e pelos seus próprios familiares. É uma daquelas pessoas que carregam o peso de ter escolhido para si, uma forma heterodoxa de auto-realização, em uma sociedade que se diz tolerante, mas nega reconhecimento aos desviantes. O reflexo desse desrespeito pelo diferente é a formação na consciência dos marginalizados uma autoimagem depreciativa. Ao não serem reconhecidos, não se reconhecem. Ao não serem estimados socialmente, não formam a sua própria autoestima.
Henry, entretanto, segue na contracorrente desse processo. Enquanto todos atiram pedras, ele estende a mão e trata a jovem com o respeito que sempre procurou. Dá a menina um mínimo de reconhecimento, de estima e, com isso, cria na garota um sentimento positivo em relação a si mesma jamais experimentado anteriormente.
Por fim, aparece a terceira mulher, a jovem prostituta Erica (Sami Gayle). Uma criança, que, aparentemente, perdeu sua inocência faz muito tempo. No seu primeiro contato com Henry, tenta conseguir um programa, de toda a forma, ao passo que o professor a repele insistentemente. Repugnando manter tal relação, sobretudo com uma garota, o personagem vivido por Brody, ao fim, se compadece com a situação da menina e, nos moldes da parábola bíblica do bom samaritano, a acolhe em seu próprio apartamento.
Acostumada a ser maltratada pela sociedade, de um modo geral, a jovem, inicialmente, repele o gesto de solidariedade de Henry. Nada mais natural, vindo de uma criatura marginalizada, que sempre que viu uma mão estendida teve que se defender da bofetada que viria. Mas, paulatinamente, Erica vai aprendendo, a expor sua vulnerabilidade diante de seu benfeitor e a aceitar-se como uma pessoa que necessita do outro.
As duas garotas (a prostituta e a aluna marginalizada), tem, então, todas as suas concepções de mundo abaladas pela presença de Henry. Ao, tomar contato, pela primeira vez com o carinho, com um gesto de amor, passam a também se exporem enquanto indivíduos carentes e a retribuir essa parcela de amor concedida. Saem de uma espiral de autodestruição e baixa estima, para adquirir, enfim, a capacidade de amarem tanto elas mesmas quanto o próximo (no caso, Henry).
Talvez, seja este, o grande tema do filme. A ideia de que o que falta na sociedade contemporânea é um pouco de amor. Sairmos de nossas zonas de conforto, desapegarmos um pouco de nós mesmo (como na frase de abertura do filme) e começarmos a se importar com o próximo como na velha máxima bíblica: “amai ao próximo como a ti mesmo”.
É isso que Kaye/Lund tenta nos dizer, porém sem subterfúgios. Afinal, os autores tem plena consciência de como é difícil esse processo de desapego, de quebra da indiferença e como pode ser mal interpretado um gesto de amor. Mas também têm plena consciência de que o sucesso de qualquer relação humana depende disso. E, desse modo, a obra nos apresenta dois finais, que muito bem poderiam ser considerados duas escolhas a nós espectadores.
Em uma opção, poderemos sofrer com as pressões de uma sociedade preconceituosa e insensível, sairmos do nosso egoísmo e obter sucesso na tentativa de incluir o outro na sua pauta de valores. Na outra, estaremos absolutamente confortáveis, sem pressões, porém nunca teremos uma relação afetiva realmente saudável e continuaremos a perpetuar a insensibilidade, a intolerância (comparada no filme, inclusive, com o nazismo) cujos resultados podem ser desastrosos.
Ao fim das contas, o que Detachment nos quer passar é que o que separa o abraço da morte (no aspecto real e simbólico) depende não do outro, não do governo, ou da religião, mas sim de nós mesmos, a partir de cada escolha diária entre o egoísmo e a solidariedade.
Por fim, gostaria de pedir desculpas ao leitor por não ter abordado toda a profundidade da obra tanto em seu conteúdo quanto em sua forma. Não o fiz, porque era impossível e porque a divisão entre forma e conteúdo, no que diz respeito ao filme ora analisado, não faz qualquer sentido (tenho sérias dúvidas se tal divisão se aplica a alguma obra), como coloca o sempre perspicaz Victor Ramos:
“Detachment é, por essência, um filme multifacetado. Tony Kaye não segue o clássico conceito da forma que supera o conteúdo; ele adere uma constante relação de diálogo entre dois polos indispensáveis para a formação de qualquer obra fílmica, mantendo sempre a igualdade destes, colocando forma e conteúdo no mesmo patamar. Detachment é obviamente um filme multifacetado: além de tratar de forma complexa vários assuntos do dia a dia — e urgentes, diga-se de passagem —, é possível notar que os principais pilares do cinema não são abandonados — a maravilhosa trilha sonora angustiante do grupo “The Newton Brothers” é extremamente compatível com o estilo de direção de Tony Kaye, que toma para si uma direção de fotografia (também assinada por Kaye) que vive em constante comunicação com o espectador. Melhor falando: Detachment é um trabalho estruturalmente perfeito”
Exatamente. Perfeição, essa é a palavra que melhor define Detachment.
Fontes consultadas:
http://ornitorrincocinefilo.wordpress.com/2012/06/25/detachment-tony-kaye-2011/
http://injecaocinefila.wordpress.com/2012/10/02/detachment-idem-2011/
http://detachment-film.com/