Filme - Prospero's Books


"Somos da mesma substância do qual são feitos os sonhos;
e nossa breve vida está rodeada por um dormir"



1991.
Filme denso. Muita sobreposição de imagens e informações.
Aproximadamente duas horas de duração.
Fantasia, teatro, dança.
Interessante que bem no início há uma referência ao filme "Drowning by Numbers" (1988), quando uma mulher também pula corda enquanto conta. No finzinho também, alusão ao Livro do Jogo. Detalhes que Greenaway pensou em relacionar.

Resenha da Revista de Cinema Contracampo
Por Paulo Ricardo de Almeida

"Por que realizar uma obra, se é tão belo apenas sonhá-la?", questiona Pier Paolo Pasolini em Decameron (Decameron, 1972). Peter Greenaway, em A Última Tempestade, transforma os delirantes sonhos vingativos de Prospero (John Gielgud), Duque de Milão exilado em ilha distante com sua filha e seus livros, em fatos reais, para refletir acerca da criação artística, ao mesmo tempo angelical e diabólica, pois, embora capaz de gerar a beleza redentora e de absorver todo o conhecimento do mundo, traz consigo, inseparável, o poder do artista, tanto sobre a obra e os personagens, quanto sobre o público para quem se dirige.

Peter Greenaway adapta "A Tempestade", de William Shakespeare: a biblioteca com que Prospero é exilado - pelo próprio irmão, que lhe toma o ducado para aliar-se ao Reino de Nápoles - permite ao cineasta inglês instaurar a intensa intertextualidade que caracteriza seus filmes, visualmente expressa através do aproveitamento da superfície do quadro - sobreposição e divisões de imagens dentro da tela, uso gráfico dos textos, quebrando a linearidade temporal da narrativa ao estilhaçar o espaço para aproximá-lo da tela do computador, hipertextual por excelência, com links que remetem sempre a outros links. Dessa forma, enquanto Prospero, cercado por figuras mitológicas (sobretudo Ariel e Calibã, o Anjo e o Demônio, respectivamente), escreve a trama de vingança, Greenaway aproveita para relacionar a obra em gestação com todos os livros que ajudaram a construir o imaginário do artista, que agora se apropria e se utiliza da rede de signos conhecida a priori a fim de criar o novo, ato em si mágico, misterioso e inexplicável, exprimindo os sonhos fantásticos que lhe atravessam a alma e o corpo.

É a arte enquanto bruxaria, que materializa as páginas escritas por Prospero, que torna reais os delírios do protagonista, que faz da vingança caminho, através do amor entre Miranda (Isabelle Pasco) e Ferdinand (Mark Rylance), para o perdão e, em conseqüência, para a redenção. Movimento, contudo, inusitado no cinema de Greenaway que, em geral, prefere o humor negro a fim de revelar o cinismo das relações pessoais e dos códigos sociais que as pautam, seja na mãe e nas filhas que matam os maridos em Afogando em Números; seja no estupro coletivo como método de punição à falsa gravidez em O Bebê Santo de Macon (The Baby of Macon, 1993); seja no exótico jantar servido ao final de O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante (The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover, 1989). Trata-se, por certo, de mostrar o poder que perpassa e que desequilibra o contato entre os homens, visto que os desiguala: na disputa pelo controle da exposição entre Stourley Kracklite (Brian Dennehy) e Caspasian Speckler (Lambert Wilson) em A Barriga do Arquiteto; nos enquadramentos precisos e arbitrários de Mr. Neville (Anthony Higgins) para seus desenhos, aos quais dispensa a mesma violência com a qual chantageia sexualmente aquela que o emprega em O Contrato do Amor (The Draughtman’s Contract); na obsessão de Greenaway pelos números, que servem para ordenar, para sistematizar e, por fim, para anular qualquer afeto ou sentimento dos personagens neles imersos.

Conforme evidenciam tanto o pré-cineasta encarnado por Mr. Neville, quanto Nagiko (Vivian Wu), a qual domina os corpos dos amantes ao usá-los como páginas em O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1996), a arte se constrói enquanto estratégia de controle. Prospero, em A Última Tempestade, detém o poder sobre os personagens que cria, pois, literalmente (é o próprio John Gielgud quem fala por eles), dá-lhes voz. Para perpetrar sua vingança, escraviza Ariel e Calibã. Frente à rebelião do segundo - a qual marca a independência progressiva das demais figuras em cena do jugo do artista - resta a Prospero apenas a obediência do primeiro, a quem promete libertar caso o objetivo a que se propõe seja alcançado.

Ariel, mas também Prospero, pois enquanto Ariel executa as ações no mundo imaginado por Prospero, este igualmente representa a ponte entre o universo cinematográfico visto na tela e o público para o qual ele se destina. De maneira que a liberdade de Ariel liga-se a de Prospero, o qual a adquire quando reconhece que não há onipotência na criação, quando, paradoxalmente, abandona o papel de criador para abraçar o de personagem: os sonhos do artista - de Prospero, de Greenaway - como veículos para incitar os sonhos dos espectadores, verdadeiros senhores a quem o cinema se subordina.