Stalker - Andrei Tarkovsky



"Agora o verão se foi, e poderia não ter vindo.

No sol está quente, mas tem de haver mais…

Tudo aconteceu, tudo caiu em minhas mãos, como uma folha de cinco pontas, 
mas tem de haver mais…
Nada de mau se perdeu, nada de bom foi em vão. 

Uma luz clara ilumina tudo, mas tem de haver mais…

A vida me recolheu à segurança de suas asas. 

Minha sorte nunca falhou, mas tem de haver mais…

Nem uma folha queimada, nem um graveto partido. 

Claro como um vidro é o dia, mas tem de haver mais".



Excelente filme aos amantes do cinema e filosofia.
As imagens em sépia transmitem a ideia de personagens em uma fotografia.
Denso - aproximadamente 2:30 min.
Stalker é um filme de 1979 do cineasta russo Andrei Tarkovsky, vencedor do Festival de cinema de Cannes, de 1980.
Mais uma obra prima deste grande escultor do tempo.
No filme de Tarkovsky, um homem humilde, ex-presidiário, chamado "stalker", guia dois homens, chamados de "professor" e "escritor" (os nomes pessoais são omitidos - metáfora para razão x emoção) até o interior da "Zona", região isolada por forças militares, localizada num pequeno local de nome não revelado. Havia a suspeita da presença de alienígenas, tendo em vista a ocorrência de fenômenos inexplicáveis naquele lugar. A Zona é repleta de armadilhas - apenas os stalkers conseguem vencê-las, guiando pessoas, mediante pagamento. Segundo o stalker, no interior da Zona há um quarto capaz de realizar os desejos mais íntimos de qualquer pessoa que nele conseguisse entrar, após a ultrapassagem de todas as armadilhas.

Este filme é típico do estilo de Tarkovsky, com tomadas lentas e longas, intensamente elaboradas, intercaladas com diálogos filosóficos e até mesmo poesias. Segundo declarou o diretor russo, o filme é principalmente sobre a fé (e a busca do paraíso interior), sendo secundário o elemento ficção científica, a exemplo do que havia declarado sobre Solaris, filme de 1972.




Tarkovsky faz da Zona um local com uma atmosfera opressiva e perigosa. Trata-se de uma área natural gigante, mas que possui alguns objetos que a tornam assustadora, como tanques enferrujados, seringas, símbolos religiosos na água e assim por diante. O diretor russo cria imagens de beleza extrema. É possível apertar o pause em qualquer cena que você terá uma verdadeira obra de arte. As longas tomadas e os movimentos de câmera peculiares de Tarkovsky nos passam a ideia de que estamos em um sonho. Somos hipnotizados por aquele mundo. 
Antes de tentar compreender o filme, devemos senti-lo, pois ele é pura poesia visual.


Para quem assistiu ao filme, ficam várias indagações - algumas filosóficas. O que é A Zona? O resultado de um meteorito? Algo feito por seres alienígenas? E o que leva as pessoas a se arriscarem lá dentro? Autoconhecimento? Desejo de aventura? Ou a simples ambição de ter seus desejos realizados? Tudo isso não passa a uma metáfora da busca do homem pelo Sagrado - um caminho repleto de medos, perigos e punições.

As conversas dos personagens parecem sem propósito, mas na verdade estão cheias de significados. Um deles se pergunta sobre a arte, sobre a música, sobre o altruísmo e sobre a fé. Enfim, uma reflexão sobre o ser humano e sua relação com o mundo. Afinal, o que estamos fazendo aqui? Podem ser perguntas sem respostas, mas deve-se aplaudir um filme que faz esses questionamentos e nos deixa pensando sobre o assunto.


De qualquer forma, mais do que interpretar e entender todo o simbolismo aqui presente, o que mais impressiona em Stalker é a capacidade de Tarkovsky de criar imagens poderosas. É um filme relativamente lento, mas que não cansa. Para completar, temos o final em que um grande segredo é revelado (o do ser contemplativo) e então começa a trilha com Ludwig van Beethoven.




AS INFLUÊNCIAS DE KIERKEGAARD
(José Vieira Mendes)
Mais do que um grande realizador, Tarkovsky provou ser também um grande pensador da sétima arte. Baseando-se nos seus conhecimento generalistas de todas as artes, em Esculpir o Tempo (edição brasileira da Martins Fontes, 2002), o seu livro onde teoriza algumas das suas concepções, traz-nos novos pontos de vista sobre o cinema, como a de que este não seria apenas formado por uma amálgama das outras artes (literatura, música, teatro, pintura, etc). Tal combinação, segundo ele, resultaria apenas numa forma híbrida, vazia e pretensiosa da imagem. Pelo contrário, defende o cinema como forma de arte absolutamente autónoma, uma vez que seu princípio estético é único e só passou a existir com o advento do cinematógrafo: o registro da impressão do tempo. Daí a afirmar que, da mesma maneira como um escultor toma um bloco de mármore e nele trabalha para dar forma à sua visão artística, o cineasta toma um bloco de tempo e parte dele para desenvolver sua obra.

Tanto a concepção estética como a atmosfera emocional dos filmes de Tarkovsky sugerem a crença do cineasta numa afirmação radical do indivíduo, curiosamente, muito semelhante à encontrada na filosofia de Kierkegaard. Para o filósofo, a individualidade define nossa existência e não o individualismo. No entanto, essa individualidade não deve ser vista apenas como o conjunto de características que nos distingue uns dos outros, mas, sobretudo, como a angústia do aqui e agora, o desespero provocado pela solidão do homem diante do infinito. Basta-nos para confirmar esta ideia recordar de alguns dos mais marcantes personagens de Tarkovsky, como Kris Kelvin (Solaris), Domenico (Nostalgia) e Alexander (O Sacrifício), para repararmos que neles vamos encontrar exactamente essa busca da individualidade, no limiar da compreensão da nossa natureza e limitações humanas. De fato, no momento em que o homem aceita a sua natureza finita e percebe que esta nada mais é do que uma fase da sua trajetória para se tornar parte de algo muito maior e mais complexo, descobre assim a finalidade e a razão da sua existência. Nos planos longos, densos e de intensa reflexão filosófica, tão característicos do cineasta, arriscamo-nos a conceber também um Deus que está muito mais próximo do que poderíamos imaginar. Mas acima de tudo, Andrei Tarkovsky acreditava que a legitimidade de um autor consiste em permitir que o público possa refletir e ir muito mais além do que é dito explicitamente nos seus filmes.

Livro lançado em 2008

Soren Kierkegaard (1813 - 1855) foi um teólogo e um filósofo dinamarquês do século XIX, que é conhecido por ser o 'pai do existencialismo', embora algumas novas pesquisas mostrem que isso pode ser uma conexão mais difícil do que fora, previamente, pensado. Filosoficamente, ele fez a ponte entre a filosofia hegeliana e aquilo que se tornaria no existencialismo. Kierkegaard rejeitou a filosofia hegeliana do seu tempo e aquilo que ele viu como o formalismo vácuo da igreja luterana dinamarquesa. Muitas das suas obras lidam com problemas religiosos tais como a natureza da fé, a instituição da fé cristã, e ética cristã e teologia. Por causa disto, a obra de Kierkegaard é, algumas vezes, caracterizada como existencialismo cristão, em oposição ao existencialismo de Jean-Paul Sartre ou ao proto-existencialismo de Friedrich Nietzsche, ambos derivados de uma forte base ateística. A obra de Kierkegaard é de difícil interpretação, uma vez que ele escreveu a maioria das suas obras sob vários pseudônimos, e muitas vezes esses pseudo-autores comentam os trabalhos de pseudo-autores anteriores. Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo - herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de estado. A perspectiva trabalhada neste livro é de cunho religioso e, na dialética existencial de Sören Kierkegaard apresenta o homem ético representado pela figura bíblica de Abraão que à medida que se posiciona a acreditar em Deus, dá o salto da fé, onde vivencia o crer sem ver, e o viver pela experiência com o próprio Deus.

Síntese da leitura da obra Temor e Tremor, de Soren Kierkegaard
Abraão tinha fé na palavra divina de que todas as nações seriam abençoadas em sua posteridade, e continuou a crer nela ainda quando, após ser pai na velhice, lhe foi exigido o sacrifício de seu único filho, Isaac; ora, tal sacrifício, que tirava todo sentido racional à promessa, significou, para Abraão, a fé no absurdo, a certeza de que Deus o estava provando e a disposição de sacrificar, se necessário, Isaac (com a certeza de que este lhe seria restituído); realiza-se, assim, o movimento que parte da resignação infinita (pela qual renuncia a Isaac), em que se adquire a consciência do seu próprio valor eterno, e chega-se, pelo absurdo, à fé, em que se readquire o finito (a retomada de Isaac); tal movimento implica a angústia e o paradoxo pois, se é preciso coragem puramente humana para renunciar a toda a temporalidade a fim de obter a eternidade, é preciso a coragem da fé para, em razão do absurdo, encontrar a alegria na temporalidade finita e transformar, assim, um crime moral em algo santo e agradável.

Aplicando-se a todos e em cada momento, a moral está no geral, constituindo-se no telos do indivíduo, que deve exprimir-se constantemente abandonando seu caráter de indivíduo para atingir o geral, de modo que a moral não pode, de forma racional, ser teleologicamente suspensa; contudo, a fé é o paradoxo segundo o qual o indivíduo, após ter ficado no geral, está isolado, agora, acima do geral, numa relação absoluta com o absoluto (posição que, por fugir ao geral, é inacessível ao pensamento); a virtude de Abraão não é, pois, moral, mas pessoal, e dela não pode falar, tornar compreensível, sendo ela um milagre que não depende somente das próprias forças do homem, embora dela ninguém esteja excluído (pois a unidade da existência humana encontra-se na paixão, e a fé é uma paixão). Ademais, o paradoxo da fé consiste em que, estando o indivíduo acima do geral (que é, no sentido abstrato, o divino e o dever), determina sua relação com o geral tomando como referência o absoluto, e não vice-versa; logo, existe um dever absoluto com relação a Deus, dever pelo qual o indivíduo refere-se como tal absolutamente ao absoluto, achando-se a moral rebaixada ao relativo; o dever absoluto pode levar Abraão à realização do que a moral proíbe, mas mantém-se a condição de que ame verdadeiramente Isaac, caindo, assim, na angústia e no paradoxo, incomunicável em termos do geral.

Finalmente, ao contrário da estética, (que autoriza ou exige o silêncio, quando por ele o indivíduo pode salvar alguém) e da ética, (que exige a manifestação pelo geral), a fé impõe a angústia silenciosa, de modo que Abraão não pode explicar que se trata de uma prova; Abraão jamais foi compreendido mas, de qualquer maneira, está perdido caso não haja o paradoxo que torne o indivíduo como tal numa relação com o Absoluto. Portanto, a fé é a mais elevada paixão do homem e nenhuma geração, inclusive a nossa, pode ir além dela. (Em Kierkegaard, o “cavaleiro da fé, como Abraão, opõe-se ao “herói trágico”, representado por Agamenon (em Ifigênia em Áulide) que, num movimento de resignação infinita, sacrifica a filha por uma exigência moral e que apoia-se no geral, pelo qual pode, então, comunicar-se).