Ao ler o ensaio de Harold Bloom sobre Kierkegaard (1813-1855) achei interessante tomar nota de alguns fragmentos que refletem a importância desse pensador também em relação ao cristianismo.
Kierkegaard, mestre de todos os conceitos da ironia, comparava os gênios a uma tempestade de raios:
"Gênios são como a tempestade de raios: investem contra o vento, aterrorizam pessoas, limpam o ar.
A ordem estabelecida inventou vários pára-raios.
E foi bem sucedida. Sim, decerto, foi bem sucedida; conseguiu tornar a próxima tempestade ainda mais violenta".
Seria Jesus Cristo, na visão de Kierkegaard, uma dessas tempestades de raios?
A diferença entre o gênio e o cristão é que o gênio é um ato extraordinário da natureza; nenhum ser humano é capaz de se transformar em gênio. O cristão é um ato extraordinário da liberdade ou, mais precisamente, um ato ordinário da liberdade, e, embora tal ocorra extraordinariamente pouco, é isso que cada um de nós deve ser. Portanto, é vontade de Deus que o cristianismo seja proclamado, incondicionalmente, a todos; por conseguinte, os apóstolos são gente simples, comum; portanto, o protótipo assume a forma inferior de um criado, tudo para indicar que esse extraordinário é o ordinário, acessível a todos - mas um cristão, mesmo assim, é algo mais raro do que um gênio.
Jesus, em três anos e meio, conseguiu apenas onze seguidores, um contraste marcante com o triunfo da evangelização observado desde aqueles tempos. Em célebre distinção entre gênio e apóstolo, Kierkegaard registrou corretamente que, "na condição de gênio, Paulo não resiste a comparações a Platão ou Shakespeare". A diferença é uma questão de autoridade; mas quem, senão Kierkegaard (e o futuro adepto, o poeta Auden), haveria de comparar o gênio ao apóstolo, Platão a São Paulo?
Kierkegaard era, claramente, um gênio; seria ele um apóstolo? Porquanto a noção central em Kierkegaard relaciona-se à
imensa dificuldade em tornar-se cristão, podemos dispensá-lo de tal chamado.
O fulcro de gênio em Kierkegaard é a sua percepção de que, em uma sociedade declaradamente cristã, é quase impossível tornar-se cristão.
Baruch Spinosa afirma que devemos amar Deus sem esperar ser por ele amados. Kierkegaard afirma que cristãos não são cristãos, mas alguma outra coisa.
Nietzsche, um passo adiante de Kierkegaard, declara ter havido apenas um cristão, e que este morreu na cruz.
Kierkegaard rezava para se tornar cristão, embora entendesse a denúncia de Emerson de que a oração é a doença da vontade.
A negação de realidades aparentes em uma sociedade francamente cristã é a essência do gênio em Kierkegaard, mas o conceito constituía, para ele, uma angústia, pois Kierkegaard tinha de ser pós-hegeliano, assim como nós temos de ser pós-freudianos.
Hegel nega a autoridade do fato, do que ele considera apenas como dado, e o que ele destrói, a fim de alcançar a verdade metafísica, através de um processo a que denomina "mediação". Embora dispusesse de um curioso senso de humor, Hegel não apreciava a ironia. Quanto à mediação hegeliana, Kierkegaard, ironicamente, substituiu-a por algo a que chamou "repetição", tópico de um livreto cujo título foi, precisamente, essa palava, publicado em 1843, sob o pseudônimo de Constantin Constantins.
"Repetição" é um tributo à própria capitulação do filósofo, pois o conceito
significa a vontade de abraçar possibilidades capazes de se tornarem transcendentais.
Kierkegaard, poeta da idéia, optara pela originalidade. Como o poeta de Keats que "morre na vida", a missão de Kierkegaard era tornar-se cristão, instruído apenas pelo próprio Cristo.
Em 1844, publicou
Fragmentos Filosóficos, um de seus esforços mais extraordinários, sob o pseudônimo de Johannes Climacus.
Na folha de rosto, lê-se:
"É possível precisar o ponto de partida histórico de uma consciência eterna?
Como é possível a esse ponto de partida ter mais do que interesse histórico?
É possível construir-se felicidade eterna a partir do conhecimento histórico?
O questionamento é formulado por
alguém que, em sua ignorância,
não sabe sequer o que ensejou".
Essa questão tripla separa o cristianismo de Kierkegaard do idealismo de Hegel e de Platão. Sócrates e seu pupilo não são capazes de trocar ensinamentos, mas um propicia ao outro meios de autocompreensão. Cristo compreende a si mesmo perfeitamente: a função dos discípulos é receber o amor de Cristo, para si mesmos e para toda a humanidade. A "repetição" dos discípulos é a perpétua renovação de sua perspectiva de se tornarem cristãos. "É possível conhecer a verdade?", pergunta Johannes Climacus. Em busca da resposta, podemos recorrer à última obra de Kierkegaard.
O filósofo morreu aos 42 anos de idade. Sofreu um colapso nervoso em plena via pública, após ter sacado os últimos valores de uma herança, derradeiro elo com o pai. Um mês depois, faleceu em um hospital, pois já não tinha razão para viver. Seu último ensaio - "A Imutabilidade de Deus" - é iniciado por uma prece.
Trata-se de um texto belíssimo que registro a seguir:
"Ó Imutável, a quem nada altera! Vós que sois imutável no amor, que, apenas pelo nosso bem, não vos permitis mudar - fazei com que também desejemos o nosso bem; permiti o nosso crescimento, com obediência incondicional, na vossa imutabilidade, a fim de encontrarmos conforto na vossa imutabilidade! Não sois como o ser humano. Se for permitido ao ser humano preservar um mínimo de imutabilidade, que não lhe seja concedido muito que possa comovê-lo, e que não se deixe comover demais. Mas a vós tudo comove, e em amor infinito. Até o que nós humanos consideramos insignificante e o que é por nós ignorado, as necessidades de um pardal, a vós comove; algo que, tantas vezes, mal capta a nossa atenção, um suspiro humano, a vós comove, Amor Infinito. Mas nada vos faz mudar, Ó Imutabilidade! Vós, que, com amor infinito, vos deixais comover, deixai que esta prece vos comova a abençoá-la, a fim de que ela possa mudar este que reza, segundo a vossa vontade imutável, ó Imutável!"
São palavras pungentes. Deus, a quem nada altera, comove-se com o amor infinito.
Quanto a nós, se não desejarmos mudar, não podemos nos permitir o amor.
A maioria de nós que apreciamos Kierkegaard chegamos a ele pela via das suas realizações estéticas, e não pelas questões espirituais; no entanto, ele tem algo a nos dizer também nesse campo, mesmo que pouco nos interessem as dificuldades em nos tornarmos cristãos.
Kierkegaard foi um gênio, e não um apóstolo, conforme ele, decerto, bem o sabia.