Em outras criaturas vivas, a ignorância do eu é a natureza; no homem, é o vício.
*Boethius
O vício pode ser definido como um rumo de conduta consentido pela vontade e que tem resultados maus, sobretudo porque eclipsam Deus e, em segundo lugar, porque são física ou psicologicamente danosos para o agente ou seus próximos. A ignorância do eu é algo que corresponde a essa descrição. Em suas origens é voluntária; pela introspecção e por dar ouvidos ao julgamento de nosso caráter por outras pessoas, podemos todos, se desejarmos isso, chegar a uma compreensão muito aguda de nossos defeitos e fraquezas e aos reais motivos de nossas ações, em oposição aos confessados e anunciados. Se a maior parte de nós permanece ignorante de nós mesmos, é porque o autoconhecimento é doloroso e preferimos aos prazeres da ilusão. Quanto às consequencias de tal ignorância, elas são más por qualquer critério, do utilitário ao transcendental. Más porque a autoignorância leva ao comportamento irrealista e assim causa todo tipo de problema para qualquer envolvido; más porque, sem o autoconhecimento, não pode haver humildade verdadeira, portanto não há autonegação efetiva, logo não há conhecimento unitivo da Base divina que sustenta o eu e habitualmente é eclipsada por ele.
A importância, a necessidade indispensável do autoconhecimento foi destacada pelos santos e doutores de cada uma das grandes tradições religiosas. Para nós no Ocidente, a voz mais familiar é a de Sócrates. Mais sistematicamente que Sócrates, os expoentes indianos da Filosofia Perene insistiram no mesmo tema. Por exemplo, há o Buda cujo discurso sobre "O Estabelecimento da Atenção" expõe (com aquela exaustão positivamente inexorável, característica das escrituras páli) toda a arte do autoconhecimento em todas as suas variações - o conhecimento do corpo, dos sentidos, dos sentimentos, dos pensamentos de si mesmo. Essa arte do autoconhecimento é praticada com dois objetivos em vista. O objetivo próximo é que "um irmão, como em relação ao corpo, prossiga a considerar o corpo, para que ele continue ardente, autopossuído e atento, tendo superado tanto o desejo exasperado quanto a depressão comuns no mundo. E no mesmo caminho quanto a sentimentos, pensamentos e ideais, ele considere cada um para continuar ardente, autopossuído e atento, sem desejo exasperado ou depressão". Além e através dessa condição psicológica desejável jaz o objetivo final do homem, conhecimento daquilo que baseia o eu individualizado. No seu vocabulário próprio, autores cristãos expressam as mesmas idéias.
Um homem tem muitas peles em si, cobrindo as profundezas do seu coração. O homem conhece muitas coisas, mas não conhece a si mesmo. Ora, trinta ou quarenta peles ou cobertas, exatamente como as de um touro ou de um urso, tão grossas e pesadas, cobrem a alma. Vá para seu próprio território e aprenda a se conhecer ali.
*Eckhart
Todos se olham agora como despertos - tão pessoal é seu conhecimento. Pode ser como um príncipe ou pode ser como um boiadeiro, mas tão exageradamente seguros de si mesmos!
*Chuang Tzu
Esta metáfora do despertar de sonhos aparece muitas vezes nas várias exposições da Filosofia Perene. Nesse contexto, a libertação poderia ser definida como o processo de despertar do "nonsense", dos pesadelos e dos prazeres ilusórios do que é comumente chamado de vida real para a consciência da eternidade. A "certeza austera da felicidade do despertar" - maravilhosa frase em que Milton descreveu a experiência do tipo mais nobre de música - chega, suponho, quase tão próxima quanto as palavras podem alcançar a iluminação e a libertação.
És (o ser humano) o que não é. Sou o que sou. Se perceberes essa verdade em tua alma, o inimigo nunca te lubriará; escaparás de todas as suas ciladas.
*Siena
O progresso espiritual é através do crescente conhecimento do eu como nada e da Face de Deus como uma realidade que abrange tudo. (Tal conhecimento, claro, é inválido se for simplesmente teórico; para ser efetivo, deve ser percebido como uma experiência imediata e intuitiva, apropriadamente efetivada). Um dos grandes mestres da vida espiritual, o professor Étienne Gilson, escreve: "O deslocamento do medo pela caridade através da prática da humildade - nisso consiste o total da ascese de São Bernardo, seu começo, seu desenvolvimento e seu término". Medo, preocupação, ansiedade - formam o núcleo central da personalidade individualizada. O medo não pode ser afastado por esforço pessoal, mas só pela absorção do ego em uma causa maior do que seus próprios interesses.
À medida que a luz aumenta, vemo-nos piores do que pensávamos. Espantamo-nos com nossa cegueira anterior à medida que vemos saindo de nosso coração todo um enxame de sentimentos vergonhosos, como répteis nojentos escapando de uma caverna escondida. Mas não devemos nos espantar nem perturbar. Não somos piores do que éramos; pelo contrário, somos melhores. Mas enquanto nossos erros diminuem, a luz com que os vemos fica mais clara e nos enchemos de horror. Enquanto não há sinal de cura, não temos consciência da profundeza de nossa doença; estamos em um estado de cega presunção e dureza, presa do autoengano. Enquanto vamos com a corrente, não temos consciência de seu curso rápido; mas quando começamos a segui-la menos, mesmo um pouquinho, ele se faz sentir.
*Fénelon
Vale a pena assistir:
http://www.youtube.com/watch?v=2cF-GW0TQkI