Escolher é refazer. Palavras são soltas. Pensamentos são expressos. Gestos são construídos. O que é a vida além das escolhas? Primar então, pelo melhor, é buscar ultrapassar o simplesmente simplório. Almejar o além, uma transmutação, crisalidar. Reunir o que se admira. A arte maior está em fazer da própria existência algo único. Alma incandescente que aspira por uma obra maior. "A VIDA É CURTA DEMAIS PARA SER PEQUENA" (Disraeli)
Pra onde foram os chefs?
Você não me conhece. Não tem problema. Sou um solitário, um selvagem.
Eu me escondo. Mas, por você, passo a vida viajando, me sento à mesa em todo lugar com nomes emprestados e, quem sabe, às vezes até o seu.
Vale dizer: eu te conheço. Eu te sigo, te precedo.
Simplesmente porque nós adoramos os restaurantes. Não somos pesos-pesados em questões técnicas. Tal como você, eu não distingo um linguado de um solha, um vinho do Piemonte de um vinho do Languedoc.
Sou da turma dos embasbacados, daqueles cuja a mandíbula se destrava por um prato bem sucedido. O que me importa é que seja bom e que o momento seja cheio de indulgência e bondade.
Nós não buscamos a excelência enfadonha, nem a tirania do requinte. Queremos apenas estar bem. Mesmo diante de uma salada verde, de um pêssego melba, de um pão com presunto e mantega.
Só que, veja bem, a cozinha hoje em dia está muito entulhada: de pratos, de forminhas, de azoto, de falastrões e de malandros, de falsos grandes chefs e pequenos do mesmo naipe. Não dá para enxergar direito. O chef está aí? Não está? Não dá pra ver nada.
Um galeto com creme sobre seu leito de lótus; um filé de saint-pierre ao molho de algas e mexilhões engrossado com manteiga meio-sal; belos lagostins tostados com legumes verdes vivamente salteados e truta preta; fricassê de galinha de Bresse com lagostins de rio em sucos de cozimento; um turnedô com fígado de pato na prancha (suflê de maçã, molho périgueux); um linguado assado na brasa com champanhe (batatas com caviar da França, emulsão); o suflê de limão verde (morangos silvestres em seu suco e sorvete acidulado). A alta gastronomia, ao querer se reunir aos deuses, lentamente nos abandonou.
Ela está lá nas alturas, em sua autocelebração. Está sentindo os farelos de suspiro que caem na ponta de seu nariz? Isso quer dizer que ela acaba de se engastar no teto. Está vendo o olhar alucinado dos nossos chefs fungando o talco do elogio? Eles estão quase dentro de seus caixões alcochoados de azul-virgem-maria. Aguardam a consagração suprema: serem liofilizados para ressurgirem como divindade adornada com o galão azul-branco-vermelho. Não lhes queira mal por isso, os chefs se assemelham aos homens. Não são apenas galináceos que se precipitam ao primeiro punhado de milho. Eles também reivindicam o direito de flutuar na ausência de gravidade. De ganhar os céus, de se juntar a seus irmãos de intranquilidade (os deuses), de viver na leveza, no açúcar em fio e nas musses conceituais. Recuperar o angelismo perdido, abandonar essa terra arruinada, antecipar-se à reencarnação. Eles nos abandonaram, eis tudo.
Ao despencar do século XXI adentro, a gastronomia, como quem não quer nada, rompeu todas as amarras. Por brincadeira e por natureza. Sem nem ao menos se dar conta, ela quebrou a máquina, pois se existe uma coisa que ela adora, é serrar os galhos. Ela navega a seu bel-prazer nas mais saborosas das contradições. O fim dos bistrôs (sim), o fim das brasseries, o fim do tabaco, o fim das gorduras, o fim dos grandes restaurantes, o fim dos guias, das críticas, das frutas vermelhas, do guacamole, das beterrabas. Sim, sim, sim.
E não. Os bistrôs gourmands se impõem, algumas grande mesas desabam, as brasseries renascem, as gorduras ficam para sempre, o creme retorna, as frutas vermelhas foram reencarnadas. A cena gastronômica nunca foi tão apaixonante quanto hoje. Não somente porque ela está totalmente dilacerada em seus paradoxos. Mas as pessoas dançam sobre sua carcaça, fazem a festa, brincam à mesa. Não entendem um pingo do blablablá dos eruditos. Acabou-se o que era doce. Nada de grave, a mesa continua sendo uma felicidade. Mas uma época acaba de chegar ao fim. Ela desaba no chão num furioso estrépito de bandejas.
(François Simon)
A crítica de Dória ao livro é bem interessante. Eu ainda estou no início, mas estou adorando a leitura.
Basta conferir:
http://ebocalivre.blogspot.com/2010/08/para-onde-francois-simon-quer-nos-levar.html