"Ponto de mutação"

O Ponto de Mutação evoca uma nova percepção de mundo que poderia ser a solução para a crise da sociedade moderna
por Ana Lira

"Traçar linhas a respeito de Ponto de Mutação (Mindwalk, 1992; drama dirigido por Bernt Capra) é um desafio tão grande quanto manter a atenção durante os 110 minutos do filme. A obra é tão singular que desperta um desejo imenso de parar tudo, a cada tópico abordado ao longo da estória, para pesquisar, refletir e escrever, escrever muito.
Baseado no livro The Turning Point, do físico austríaco Fritjof Capra, o filme deixa tantos caminhos para discussão, ao seu término, que escolher sobre que aspecto tratar acaba se tornando uma tarefa crucial e até mesmo injusta. Como este veículo possui uma abordagem cultural, esse será o viés de apresentação da obra. Porém, o lado científico de Ponto de Mutação é uma das coisas mais belas já mostradas em trabalhos do gênero e de maneira alguma deve ser descartada por aqueles que, por ventura, decidirem se aventurar nos passos dos Capra.
FRANÇA, INÍCIO DA DÉCADA DE 1990
Sonia Hoffmann (Liv Ullmann) é uma física desiludida com os rumos tomados pela ciência. Após descobrir que suas pesquisas com microlasers estavam sendo utilizadas no projeto americano Guerra nas Estrelas, ela decidiu isolar-se em um vilarejo francês para repensar a vida. Embora tendo a chance de conviver um pouco mais com a única filha, enfrenta um processo difícil desta convivência e o atrito entre as duas acaba sendo acentuado porque suas percepções do mundo divergem completamente.
No mesmo país, na capital, vive o poeta Thomas Harrimann (John Heard). Ele abandonou a cidade de Nova York por não suportar um modo de vida mercantilizado e refugiou-se no velho mundo para recuperar-se da decepção profissional e de um casamento fracassado, e para tentar superar, com tranqüilidade, a crise de meia idade que o acomete. Na América no Norte, seu amigo Jack Edwards (Sam Waterston) é um político bem sucedido. Porém, após perder as eleições para presidente dos Estados Unidos da América, sente-se esgotado, confuso em relação aos rumos de sua carreira e solicita socorro. Edwards recebe um convite de Thomas para passar uma temporada na França e o encontro dos dois com Sonia Hoffmann marca o início do conflito proposto em Ponto de Mutação.
O cenário onde a trama tem sua evolução é um castelo no litoral noroeste, no alto do Mont Saint Michel. Uma construção medieval localizada na fronteira com a Normandia e a Bretanha. A região é famosa por possuir a maré mais alta do mundo. Em alguns pontos, ela atinge até quinze metros e deixaria o vilarejo de La Mont Saint Michel completamente isolado do continente, se não fosse um acesso construído para ligar a ilha à França. O local é propício para a discussão que toma toda a estória, por conter objetos que remontam à história da sociedade moderna e evocam as linhas de pensamento inerentes a ela.
SOMOS PARTE DE UMA TEIA DE RELAÇÕES
Embora o filme seja repleto de referências a diversas teorias, as duas linhas de pensamento confrontadas diretamente são: o pensamento mecanicista e o pensamento holístico.
O primeiro é derivado dos estudos de René Descartes e trouxe a visão de que o cosmos poderia ser entendido como um relógio. A natureza seria então uma máquina, onde bastava desmontar as peças e entendê-las para compreender o todo. Esta linha de raciocínio foi aceita em definitivo quando Isaac Newton formulou as três leis da física que descreviam o movimento, e tomou conta das artes, da política e da sociedade. Pessoas que sequer sabem quem foi Descartes e Newton vivem inseridas em uma rotina de vida baseada na perspectiva destes pensadores. Que perspectiva seria essa? A de que a vida social é composta de fatos isolados. Quantas pessoas eram vistas, nas ruas, comentando que o governo brasileiro não deveria emitir opinião sobre a guerra do Iraque porque ela estava acontecendo do outro lado do mundo, e portanto, não teria nada a ver com o Brasil? Ou quantas acham que a morte de crianças na Somália não tem relação nenhuma com a desnutrição das crianças no interior do nordeste, por exemplo? Estas são opiniões cujas raízes foram construídas dentro de uma visão de mundo mecanicista (ou cartesiana).
A teoria holística segue o caminho oposto. O termo derivado do grego quer dizer, de maneira geral, "o todo", "o completo". Essa teoria investiga a relação de cada parte dentro da totalidade e a influência desta totalidade em cada parte, dando ênfase nas interações existentes entre elas. Para o holismo, o mundo é como um jogo de quebra-cabeças, onde cada peça tem uma função importante como complemento da figura e, sem uma delas, o jogo fica incompleto. Por este motivo, se enfatiza a preservação da vida a partir da prevenção de problemas, e não da intervenção – como é realizado em um modo de vida mecanicista, onde os desastres precisam acontecer para que se tomem providências.
O pensamento holístico defende uma visão de mundo integrada. Aqui, as crianças da Somália, que morrem de fome, e as brasileiras, que morrem de desnutrição, não são tratadas como dois problemas separados e sim frutos de uma mesma crise, descrita em uma das cenas pela personagem de Liv Ullmann: "Vocês sabiam que, no mundo todo, todo dia, 40 mil crianças morrem de desnutrição e doenças evitáveis? Quase a todo segundo? Agora…e agora…e agora… Mas estas curtas vidas não podem ser vistas isoladamente. Elas são parte de um sistema maior, que envolve a economia, o meio ambiente, e sobretudo a grande dívida do Terceiro Mundo. O fardo dos empréstimos frenéticos não recai sobre quem tem contas no estrangeiro ou empresas, mas sim sobre os que já não têm nada! Há três anos, um presidente perguntou: 'Crianças devem passar fome para pagarmos a dívida?' Tal pergunta foi respondida na prática, e a resposta foi 'sim', porque, desde então, milhares de crianças do Terceiro Mundo deram a vida delas para pagar a dívida de seus países e outros milhões pagam os juros com corpos e mentes subnutridos".
Nesta linha de pensamento, esta crise seria resolvida se as pessoas começassem a pensar que tudo está interligado e é interdependente. Seria sair de uma percepção individualista para uma percepção coletivista da vida. Como diz a personagem da cientista mais à frente, "os índios americanos pensavam nas conseqüências de suas ações até a sétima geração" e é este tipo de vivência responsável que é colocada no filme como solução para a reestruturação da sociedade moderna. Vale salientar que o filme faz uma crítica aberta não apenas ao modo de vida moderno, mas especificamente à sociedade ocidental, representada pelo american way of life. Todos os exemplos de um modo de vida viciado, mercantilista, individualista e cartesiano são atribuídos à sociedade americana.
A REALIDADE: QUEM PRECISA DELA?
Os conflitos, no entanto, não se resumem às teorias. Ao serem debatidas pelos três personagens, elas trazem a tona suas tempestades pessoais que também são fruto desta crise de percepção da humanidade. Jack, Thomas e Sonia notam que, embora tenham noção de como o mundo deveria ser, eles não conseguiram, até aquele momento, implantar suas teorias em suas próprias vidas. Jack não sabe como integrar política com a visão de mundo proposta por Sonia. Esta, por sua vez, descreve de maneira espetacular como os sistemas se integram, mas não consegue manter uma relação normal e saudável com sua própria filha. E Thomas, juntamente com Sonia, é um fugitivo. Isolaram-se em uma ilha e não têm pretensões de voltar a desempenhar seus papéis sociais. Para que ter idéias brilhantes se elas não são compartilhadas? Para que projetar um modo de vida melhor se não se tem coragem de lutar por ele? É isto que questiona Jack, ao dizer que seus amigos são como vozes que gritam no meio do deserto, ao contrário de voltarem para o mundo real e tentar conviver com as adversidades presentes nele.
Este questionamento parece despertar em Thomas uma lição e ele então recita o seguinte poema:
O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?Respondo que o oceano sabe.Por quem a medusa espera em sua veste transparente?Está esperando pelo tempo, como tu.Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma hora e um mar certos? Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola. Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.
O poema de Pablo Neruda é usado como uma metáfora de tudo o que eles passaram naquele dia de convivência. Ao buscar respostas para as saídas do mundo, eles recaíram sobre as perguntas que mantinham dentro de si. Caminha-se investigando as estrelas sem fim, os mistérios do mundo e quando se acorda a única coisa que se tem em mãos é a própria vida, as relações que a ela pertence, as pessoas que se ama, que se quer bem. Um dos últimos discursos de Thomas no filme diz que a vida sente a si mesma e é maior que as teorias que a condensam em um relógio ou em um sistema cujas partes se interligam. A realidade. Sim, precisa-se dela.
NENHUM SANTO SUSTENTA-SE SOZINHO
Além de Pablo Neruda o filme possui, ao longo de sua construção, referências a diversos escritores, poetas, estadistas, cientistas e figuras religiosas. A integração destes pensadores é dada pelo tom da narrativa, cujo objetivo é defender um modo de vida integrado, porém, provido de essência. A vida não se resume a uma máquina e nem a uma rede de conexões bem feitas. Existe algo maior que é fruto da convivência, da vida em comum. Os argumentos de Jack, Tom e Sonia foram recheados de citações que transformaram o conteúdo científico, religioso e filosófico do filme em poesia, em diálogos permeados de sentimento e significado. Algumas das referências seguem abaixo.
Ao dizer que nenhum santo sustenta-se sozinho, Thomas cita parte de um poema de John Donne para Jack na entrada do castelo:
Nenhum homem é uma ilha isolada;cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra(…)E por isso não perguntes por quem os sinos dobram;eles dobram por ti.
Este poema inspirou um romance de Ernest Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram, que foi baseado na experiência do escritor americano como correspondente de guerra.
Sonia está questionando os motivos que levam a sociedade continuar vivendo sob uma perspectiva ultrapassada e Jack cita uma frase do estadista americano Thomas Jefferson: "É tolo a sociedade apegar-se a velhas idéias em novos tempos. Como é tolo um homem tentar vestir suas roupas de criança". Jefferson foi o terceiro presidente dos Estados Unidos e autor da Declaração de Independência americana.
Em meio à uma explicação sobre como Isaac Newton fundamentou a visão cartesiana do mundo, Sonia ouve de Thomas: "Possa Deus escapar da visão de Isaac Newton". A frase é do poeta inglês William Blake, crítico ferrenho da visão única do mundo e de Newton. Mais tarde Thomas retoma outra frase de Blake, "Se as portas da percepção se abrissem, tudo pareceria como é", para dizer que concorda com a cientista a respeito da necessidade de enxergar as coisas de outra maneira.
Ainda nesta conversa sobre Newton e física nuclear, Thomas faz referência ao Deus Hindu Shiva, dizendo que na tradição hinduísta a dança de Shiva seria a mola de sustentação do universo, por ser considerada fonte do contínuo fluxo de energia que mantém o cosmos em atividade.
Em uma das últimas conversas do filme, Sonia comenta que a vida sofre um processo de renovação. E dá o exemplo de que as células da pele renovam-se tão rapidamente que boa parte do pó de nossas casas é composto de células mortas. Thomas comenta então que a cada aperto de mão, esta teria um novo conjunto celular e cita Heráclito: "É impossível pisar no mesmo rio duas vezes". TUDO É UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA…
Se você chegou até aqui, dê um passo à frente e procure ver o filme. Ele não tem romance, não tem aventura, não tem mocinho, nem bandido, não tem clichês e nem te deixa confortável com uma explicação redondinha no final, mas é excelente. É apenas uma questão de perspectiva, de pensar que um filme desprovido de uma receita fácil pode ser, em contrapartida, enriquecedor. Conheço algumas pessoas que desistiram de vê-lo por causa do excesso de teorias explanadas durante os 110 minutos. Mas até nisso Ponto de Mutação é surpreendente, por testar a nossa força de vontade de querer ver algo diferente ou continuar sempre com os mesmos modelos. Certamente a visão cartesiana que existe em nós brigará com a visão holística proposta pelo diretor, mas vale a pena vencer essa barreira e chegar até o fim. Na defesa por uma visão de mundo diferente, o personagem de Sam Waterston diz algo que pode ser pretensioso, mas que serve de impulso: "De vez em quando alguém tem que fazer a coisa certa". A beleza do filme e o aprendizado são as recompensas."
Fonte: Rabisco

Postado por: Palloma

CDS

Muito bom os cds:
*Parabelo - trilha sonora da Cia. de Dança Grupo Corpo - Tom Zé e José Miguel Wisnik, 1994
*Nazareth
*Onqotô (Caetno Veloso e Wisnik) 2006
www.grupocorpo.com.br

TÉDIO

KIERKEGAARD:

Como o tédio é terrível
- terrivelmente entediante;
não conheço expressão mais forte,
expressão mais verdadeira,
pois somente o semelhante conhece o semelhante.
Se pelo menos houvesse uma expressão mais elevada, mais forte;
isso pelo menos indicaria uma mudança.
Deito-me esticado,
inativo;
a única coisa que vejo é:
VAZIO;
a única coisa que assimilo:
VAZIO;
a única coisa em que me movo:
VAZIO;
Nem sequer sinto dor.



GEORGE BERNANOS "Diário de um cura de aldeia"

Eu me dizia, assim, que os homens são consumidos pelo tédio.
Naturalmente, temos que refletir um pouco para perceber isto - não é coisa que se veja de imediato.
É uma espécie de poeira.
Vamos para cá e para lá sem vê-la, a aspiramos, a comemos, a bebemos, e ela é tão fina que nem sequer range entre nossos dentes.
Mas basta pararmos por um momento, e ela assenta como um manto sobre nosso rosto e nossas mãos.
Temos de estar a sacudir constantemente de nós essa chuva de cinzas.
É por isso que as pessoas são tão agitadas.

Sobre o tédio, eu digo:

"um grande fogo serpenteava alto e rubro,
flamejando na lareira
com os olhos sonolentos
riu estrepitosamente"

Wittgenstein

Século XX
Os limites do pensamento são delineados pelos limites da linguagem em que era conduzido.
Os padrões para avaliação da verdade não residiam nem no céu nem nos confins da mente, mas na gramática da prática pública.
Quando imaginavam estar examinando a natureza das coisas, os filósofos estavam apenas, retirando palavras do seu contexto.

Pesquisar: pensador contemporâneo *Noam Chomsky (descrito como filósofo e criador da linguística)