Dostoiévski - da Literatura ao Cinema


"No fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada!
O melhor é a inércia consciente!
Pois bem, viva o subsolo!
Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo). Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!
Ali, pelo menos, se pode… mas estou mentindo agora também.
Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar!
Ao diabo o subsolo!"


Lançado em 2008 pela L± v.670.

Na primeira parte, intitulada “O subsolo”, o autor se apresenta “sou um homem doente... um homem mau. Um homem desagradável”, expõe seus pensamentos e sua inserção no mundo moderno. Na segunda parte, intitulada “A propósito da neve úmida”, temos as memórias propriamente ditas de um sujeito esquisito, rancoroso, angustiado, pessimista, obsessivo, perverso, inadequado ao mundo que o rodeia e que sente uma espécie de prazer mórbido em ser como é. A narrativa é em primeira pessoa. É um narrador filósofo, um “anti-herói”. Uma personagem cuja existência cotidiana está mergulhada numa completa metafísica paradoxal. As ações da personagem na segunda parte do texto têm a função de referendar as teses da primeira.

“O homem do subsolo” leva-nos a desconfiar de todas as certezas. Expõe um inconformismo do desejo. Aliás, todas as produções literárias de Dostoiévski não buscam saciar o ímpeto de felicidade e beleza, não apresentam respostas simplificadoras. Pelo contrário, questionam profundamente os lugares comuns, fazem-nos trilhar labirintos e vãos existenciais até chegarmos ao fundo do poço e lá percebermos que a natureza humana é feita de paradoxos.

A única certeza que o homem do subsolo nos dá é sua profunda aversão pelo racionalismo e pela mentalidade positivista do século em que vive: “(...) dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu temo até agora”.
Esse personagem anuncia a complexidade e a ambiguidade do homem moderno, fundamentado na razão iluminista e suas contradições, que serão retratadas, posteriormente, na chamada obra madura de Dostoiévski: Crime e castigo, O Idiota, Os demônios e Irmãos Karamazov.

O homem do subsolo é o homem moderno, angustiado, solitário, que vive num mundo fragmentado, desordenado, que não permite nenhuma perspectiva. Sua perturbação mental, sua fraqueza, sua desilusão, seu desespero, suas psicoses devem-se a um mundo idiota e idiotizante. Um homem que até tenta, mas não consegue mais sair de si. Está alienado.

Por meio do homem do subsolo, Dostoiévski discute a liberdade individual, no mundo moderno, defendida pelo Romantismo, que maquia a realidade, vendendo promessas de sonhos e felicidade duradouros. 
Para o autor, não há saída para a humanidade enquanto ela se deixar levar por discursos românticos daqueles que detém o poder.
O encontro do homem do subsolo com Liza, uma prostituta terna e compreensiva, ocorre numa manhã de neve e gera um encanto que permanece por algum tempo. No entanto, o homem do subsolo não compreende em profundidade seus sentimentos. Não acredita no amor convencional, mas também não encontrou ainda um substituto para esse sentimento. Sente-se perdido e age de forma contraditória, como se sofresse de um grave distúrbio de personalidade. Antes de dialogar com ela, fala consigo mesmo por meio dela: “Subitamente vi ao meu lado dois olhos abertos que insistentemente me examinavam com curiosidade. Era um olhar frio, indiferente, sombrio, como de uma pessoa totalmente estranha; passava uma impressão pesada”.

Fala sobre regeneração humana, para Liza, no prostíbulo, como se, com esse discurso, pudesse ter acesso ao mundo da “normalidade”. Liza funciona como um espelho que reflete a possibilidade de transformação, a partir da inserção do homem do subsolo na ordem social vigente, a qual sempre questionou e desconfiou. O esforço não era para “salvá-la”, mas para redimir-se por meio ela, o que o levou a uma exaustão física e emocional, pois retorna ao ponto de partida, ou seja, a conclusão de que não há salvação para o ser humano.

Nessa segunda parte da novela, o homem do subsolo extravasa sua irritação, sua amargura, sua fraqueza doentia, seu escárnio, no jantar com os ex-colegas e principalmente no relacionamento mórbido que inicia com Liza, uma alma indefesa. Os sentimentos de amor, amizade, ódio, compaixão, atração, repulsa, aparecem entrelaçados, e inseparáveis.

Ao mesmo tempo em que banca o conselheiro de Liza e parece querer ajudá-la, impõe-lhe humilhações. Uma delas foi quando, após ter tido uma relação sexual com ela, colocou o dinheiro na mesa. Nessa ocasião vinga-se de todas as humilhações que sofreu durante a vida. Outra foi quando ela o visitou, em sua casa, atendendo ao seu convite e surpreendentemente é espezinhada por ele.

Parece compadecer-se de Liza e da situação em que ela vive. No entanto, ao mesmo tempo em que se coloca ao seu lado, parecendo comungar com seus sentimentos, este homem do subterrâneo toma atitudes ofensivas, de menosprezo, de sarcasmo, de escárnio. Sua figura também provoca, muitas vezes, compaixão nos outros, mas odeia os que o aceitam por compaixão. Acredita não precisar desse sentimento.

Apesar da miséria material e do desprezo recebido pelos que o rodeiam, o homem do subsolo possui consciência, está em permanente reflexão e tem dificuldade em aceitar seu destino. 
Esse excesso de consciência é que o leva à loucura.
Acredita que sua existência possa ser transformada repentinamente, mas não com uma prostituta. Sua consciência apesar de profunda ainda é romântica.
Dostoiévski coloca na boca do homem do subsolo um discurso de questionamento da felicidade burguesa, lançando dúvidas na crença da razão absoluta. O episódio do encontro do homem do subsolo com Liza é exemplar na ilustração dessa afirmativa, embora este personagem, aparentemente, não opere nesse preceito. Ele oscila sempre entre opostos: desejo e culpa, demência e razão, compaixão e escárnio. Entretanto, sua racionalidade é mais concreta do que a da média das pessoas que pautam suas vidas por princípios lógicos, mas criam regras sociais que servem para conter as demandas individuais, favorecendo assim a filiação “voluntária” do indivíduo ao corpo social homogeneizador que exclui todos aqueles que não se enquadram no modelo.
Para Dostoiévski, não há como fugir de certos desígnios impostos pelo desejo e pelo imponderável e, por mais que se tente negar ou mudar, o desejo e a emoção são inerentes ao ser humano. Por meio desses sentimentos é que o sublime e o grotesco irão se manifestar.

O subsolo aparece como sendo o subconsciente humano. É no subsolo que se encontra pensamentos e ideias que queremos esconder de todos, até de nós mesmos, e são esses pensamentos que comandam nossos atos:

"Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. 
Mas ainda há outras lembranças em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um considerável número dessas coisas guardadas bem no fundo. 
Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente."


Filme lançado em 1995.
Uma poderosa obra existencialista.




Afetações de um vira-lata


Sofrer de bovarismo cultural é achar que existe uma vida maravilhosa do outro lado do Atlântico

A afetação com vinhos é um sintoma clássico. Chegamos ao ponto de ser melhor não falar sobre vinhos em jantares inteligentes para que não pensem que somos gente que faz curso de enologia. Na verdade, quem entende mesmo de vinhos deve ficar calado quando os outros começam a expor seus cursos feitos por aí. Nunca se deve usar expressões como "amadeirado".

Sim, falo das afetações típicas de brasileiros e paulistanos, mais especificamente. A burguesia sempre sofreu de um complexo de vira-lata em relação à aristocracia medieval, porque esta era o que era, enquanto a burguesia é o que tem, e nada mais.

Quando atravessamos o Atlântico e chegamos ao Brasil, a agonia da burguesia com sua condição vira-lata piora. Desesperados buscam passaportes italianos para poderem, num momento de glória, pegar a fila dos passaportes europeus ao entrar na Europa. O desespero fica maior se não tiver ninguém pra ver os 15 minutos de fama na fila dos passaportes europeus. Quem viaja sozinho busca com o coração na boca algum brasileiro coitado com passaporte brasileiro para que ele veja a glória do pseudo-italiano.

Outro sintoma da mesma patologia é a tentativa de encontrar nobreza na ancestralidade. Hipótese pouco provável porque normalmente quem está bem nunca imigra para lugar nenhum. Todo imigrante é um coitado, por definição.

Mas, talvez uma das afetações mais terríveis, e muito comum nesta época de Copa do Mundo, é ficar falando mal do Brasil. Claro, o Brasil é mesmo um problema. A Copa do Mundo trouxe à tona de forma evidente, sob os holofotes do mundo, nossa incompetência em infraestrutura. E, de fato, o Brasil é levado pouco a sério por aí. O jornalismo internacional está muito mais atento à África e à Ásia do que à América Latina. Somos um continente esquecido, para o bem e para o mal. Mas, a afetação vira-lata vai muito além da consciência de nossas mazelas.

Vejamos. Ela se manifesta na mania de usar expressões (hoje um pouco fora de moda) como "coisa de primeiro mundo". A tentação de comparar o Brasil com a Europa é a mais "chique", porque inclusive mostra que o fulano é "viajado" --expressão triste por definição. Os mais ingênuos comparam o Brasil com os EUA, os mais afetados comparam com a Europa ocidental porque os EUA "eram" capitalistas selvagens. Digo "eram" porque os EUA paulatinamente se transformam em um dos países de maior invasão da vida privada pelo governo federal.

Quer um exemplo banal? A vida real é mesmo banal, quem não sabe disso e imagina que existe uma "vida chique e especial" por aí é gente que sofre de bovarismo cultural. Sofrer de bovarismo cultural é achar que existe uma vida maravilhosa do outro lado do Atlântico que só gente inteligente conhece.

Mas, voltemos ao exemplo banal. Dizer que no Brasil não se respeita fila e que na Europa se respeita é coisa de quem nunca viajou muito mesmo. Muitos europeus furam a fila na maior cara de pau, dando as mais variadas razões. Às vezes, tenho a impressão que os brasileiros respeitam fila com muito mais frequência.

Outra afetação é querer ir a restaurantes "melhores do mundo". A fila de espera pode durar meses. Restaurantes assim são aquele tipo de lugar que você vai mais pra ser visto lá do que pela comida mesmo, que às vezes é tão chique que o gosto se perde na sofisticação fake.

Claro, bons restaurantes existem, mas nada tem a ver com excessos de propaganda.

No final das contas, como sempre, toda elegância é discreta, assim como toda virtude é silenciosa. Esta é, talvez, uma das maiores contradições do mundo contemporâneo pautado pelo ridículo das redes sociais: todo mundo tem que aparecer para existir. Esta contradição aparece, por exemplo, quando reclamamos de que as pessoas invadem nossa privacidade quando a maioria de nós "posta tudo" pra ser visto.

LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 23/06

Cartagena das Índias

Após tantos olhares, breves vestígios...   



Cidade Murada





































Típico: Manga verde temperada com limão e pimenta 







Na parede do bar, a dica...












































































































Fotografia: LCK