O ESPECTRO DA ESPERANÇA



Quem somos?
De onde viemos?
Pra onde vamos?
Que esperamos?
O que nos espera?
Assim começa Ernst Bloch no prefácio de "O Princípio Esperança".
Logo lembrei deste célebre pensador depois de ver o documentário acima. Denuncia o aspecto desumano da globalização. Apesar da permanência de um suave ruído, vale a pena assistir. Abrir os olhos mais uma vez. Despertamos e adormecemos constantemente perante a realidade.
Ernst segue:
Muitos se sentem confusos e nada mais. O chão balança, eles não sabem por que nem de quê. Esse seu estado é de angústia. Tornando-se mais definido, é medo.
Certa vez, alguém foi para bem longe pra aprender a temer. No passado próximo, conseguia-se isso com mais facilidade e proximidade; essa arte de temer era dominada de forma assustadora. Agora, porém, deixando de lado os artesões do medo, é o momento para um sentimento mais condizente conosco.
O que importa é aprender a esperar. O ato de esperar não resigna: ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera, colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las: ele nem consegue saber o bastante sobre o que interiormente as faz dirigirem-se para um alvo, ou sobre o que exteriormente pode ser aliado a elas. A ação desse afeto requer pessoas que se lancem ativamente naquilo que vai se tornando e do qual elas próprias fazem parte. Essa ação não suporta uma vida de cão, jogada de modo meramente passivo no devir, no intocado, ou mesmo no lastimavelmente reconhecido.
O ato contra a angústia diante da vida e as maquinações do medo é a atividade contra os seus criadores, em grande parte bem identificáveis, e ele procura no próprio mundo aquilo que ajuda o mundo - isto é encontrável. Quanto já não se sonhou com isso ao longo dos tempos, sonho de uma vida melhor que seria possível! A vida de todos os seres humanos é perpassada por sonhos diurnos, que em parte são apenas uma fuga insossa e até enervante, e até presa para enganadores. Outra parte, porém, instiga, não permite se conformar com o precário que aí está, não permite a resignação. O esperar está no cerne dessa outra parte, que é ensinável. Ela pode ser extraída tanto do sonho diurno livre de regras como do seu uso leviano, pode ser ativada sem estar envolta em névoa. Nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que importa é saber sempre mais sobre eles e, desse modo, mantê-los direcionados de forma clara e solícita para o que é direito. Que os sonhos diurnos tornem-se ainda mais plenos, o que significa que eles se enriquecem justamente com o olhar sóbrio - não no sentido da obstinação, mas sim no de se tornar lúcido. Não no sentido do entendimento meramente contemplativo, que aceita as coisas como são e estão no momento, mas sim no da participação, que as aceita em seu movimento, portanto, também como podem ir melhor. Que os sonhos diurnos tornem-se, desse modo, realmente mais plenos, isto é, mais claros, menos caprichosos, mais conhecidos, mais compreendidos e mais em comunicação com o correr das coisas. Para que o trigo que quer amadurecer possa crescer e ser colhido.
Pensar significa transpor.
Contudo, de tal maneira que aquilo que está aí não seja ocultado nem omitido. Nem na sua necessidade, nem mesmo no movimento para superá-la. Nem nas causas da necessidade, nem mesmo no princípio da virada que nela está amadurecendo. Por essa razão, a transposição efetiva não vai em direção ao mero vazio de algum diante-de-nós, no mero entusiasmo, apenas imaginando abstratamente. Ao contrário, ela capta o novo como algo mediado pelo existente em movimento, ainda que, para ser trazido à luz, exija ao extremo a vontade que se dirige para ela. A transposição efetiva conhece e ativa a tendência de curso dialético instalada na história. Em primeiro lugar, todo ser humano, na medida em que almeja, vive no futuro: o que passou vem só mais tarde, e o presente autêntico praticamente ainda não está aí. O futuro contém o temido ou o esperado e, estando de acordo com a intenção humana, portanto sem malogro, contém somente o esperado. A função e o conteúdo da esperança são incessantemente experimentados e, em tempos de sociedade em ascensão, foram incessantemente acionados e difundidos. Unicamente em uma velha sociedade em declínio, como o Ocidente atual, surge uma certa intenção parcial e efêmera no sentido apenas descendente. Então, para aqueles que não conseguem achar uma saída para a decadência, o medo se antepõe e se contrapõe à esperança. O medo se apresenta como máscara subjetiva e o niilismo, como máscara objetiva do fenômeno da crise: fenômeno suportado, mas não compreendido; lamentado, mas não removido. De qualquer modo, a remoção é impossível em solo burguês, ou mesmo no abismo a ele advindo, contraído por ele, ainda que ela fosse desejada, o que de modo algum é o caso. Sim, o interesse burguês gostaria de arrastar para dentro do próprio fracasso justamente cada um dos demais interesses que lhe são contrapostos. Assim, para extenuar a nossa vida, ele torna a própria agonia aparentemente fundamental, aparentemente ontológica. A situação sem saída do ser burguês é estendida à situação humana, a todo o ser. A longo prazo, todavia, é em vão: a esvaziada forma de ser burguesa é tão efêmera quanto a classe que por meio dela se declara única, e é tão sem sustentação como a existência aparente do próprio imediatismo leviano a que se consagrou. A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas. É por isto que até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e perversamente estimulada. É por isso que justamente a esperança, limitada porém a uma mera manifestação interior ou como consolação voltada para o além, é pregada de todos os púlpitos. É por isso que até mesmo as últimas misérias da filosofia ocidental não conseguem mais apresentar uma filosofia da miséria sem a penhora de uma suplantação, de uma superação. Isto é, não mais de outra maneira senão que o ser humano seja determinado em sua essência pelo futuro, entretanto com o indicativo cínico e interesseiro, hipostasiado a partir da sua própria condição de classe, de que o futuro seria o letreiro luminoso do bar noturno anunciando a ausência de futuro e que o destino do ser humano seria o nada. Agora, pois, que os mortos enterrem seus mortos: o dia que está começando, mesmo na protelação que lhe aflige a noite que se prolonga além da conta, dá ouvidos a outras coisas além do repicar fúnebre mormacento e putrefato, niilista e vão. Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua existência tanto privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos, por sonhos de uma vida melhor que a que lhe coube até aquele momento. No inautêntico, e ainda mais no autêntico, toda intenção humana é erigida sobre esse fundamento. E mesmo onde provoca ilusões - como tantas vezes até agora, ora cheio de bancos de areia, ora cheio de quimeras -, o fundamento poderá ser de uma vez denunciado e eventualmente purificado somente mediante a investigação objetiva da tendência e subjetiva da intenção. Corruptio optimi pessina: a esperança fraudulenta é uma das maiores malfeitoras, até mesmo um dos maiores tormentos do gênero humano, e a esperança concretamente autêntica, a sua mais séria benfeitora. A esperança sabedora e concreta, portanto, é a que irrompe subjetivamente com mais força contra o medo, a que objetivamente leva com mais habilidade à interrupção causal dos conteúdos do medo, junto com a insatisfação manifesta que faz parte da esperança, porque ambas brotam do não à carência.
Pensar significa transpor.
Contudo, até agora o transpor ainda não encontrou o seu pensar mais preciso. Ou, caso tenha sido encontrado, ali havia olhos por demais levianos que não enxergaram a questão. O substituto inconsciente, a representação plagiadora corriqueira, enfim, as bugigangas de um espírito de época reacionário, mas também esquematizante, desalojaram o que fora descoberto. Marx representa a reviravolta na tomada de consciência do transpor concreto. Porém, em torno dessa reviravolta, hábitos de pensamento fortemente incutidos aderem a um mundo sem front. Ali, não só o ser humano mas também o entendimento da sua esperança são precários. O ato de intencionar não é ouvido no seu tom sempre antecipatório, a tendência objetiva não é reconhecida na sua potencialidade sempre antecipatória. O desiderium, a única qualidade sincera de todos os seres humanos, não foi investigado. O ainda-não-consciente, o que-ainda-não-se-tornou, embora preencha o sentido de todos os seres humanos e o horizonte de todo ser, não conseguiu se impor nem mesmo como palavra, que dirá como conceito. Esse florescente campo de interrogações praticamente ainda não teve voz na filosofia. O sonhar para frente, como diz Lenin, não foi refletido, apenas foi mais esporadicamente tangenciado, não encontrou um conceito à sua altura. O esperar e o esperado, no sujeito e no objeto respectivamente, o fenômeno do emergir como um todo não suscitou, até Marx, nenhuma abordagem global em que encontrasse um lugar, quanto mais um lugar central. O grandioso evento da utopia no mundo quase não foi esclarecido. De todas as singularidades da ignorância, esta é uma das mais evidentes. Diz-se que Varrão, em sua primeira tentativa de produzir uma gramática latina, esqueceu o futurum. Filosoficamente, isso ainda não foi percebido de modo adequado. E significa que um pensamento preponderantemente imóvel não nominava nem entendia essa propriedade, e reiteradamente excluía o que lhe sobrevinha. Como saber contemplativo, ele é per definitionem unicamente um saber do que apenas pode ser contemplado, ou seja, do passado, e sobre o que-ainda-não-veio-a-ser ele estende os conteúdos formais fechados provindos do que-já-se-efetivou. Consequentemente, este mundo, onde ele é compreendido historicamente, é um mundo da repetição ou do grande sempre-outra-vez, é um plágio de fatalidades, como Leibniz o denominou sem romper com ele. O evento torna-se história; o conhecimento, rememoração; a festividade, comemoração do que já ocorreu. É o caso de todos os filósofos até o presente momento, com sua forma, ideia ou substância assentadas como estando prontas, inclusive no que se refere aos postulados de Kant e até mesmo à dialética de Hegel. Tanto a necessidade física como a metafísica estragaram o apetite dessa forma, foram-lhe obstruídos especialmente os caminhos da satisfação ainda por acontecer, certamente não só de caráter contábil. A esperança, com seu correlato positivo - a certificação ainda inclusa da existência acima de qualquer res finita -, não aparece dessa forma na história das ciências, nem como fenômeno psíquico nem como fenômeno cósmico e menos ainda como o portador daquilo que nunca ocorreu, do novo possível. Por isto, é bastante extensa a tentativa de levar a filosofia até a esperança, um lugar do mundo não habitado quanto as terras mais cultivadas e tão inexplorado quanto a Antártida.
Desde Marx não existe mais investigação de verdade e nem juízo realista que possam esquivar-se dos conteúdos subjetivos e objetivos da esperança do mundo - a não ser sob pena de trivialidade ou de beco sem saída. A filosofia terá consciência do amanhã, tomará o partido do futuro, terá ciência da esperança. Do contrário, não terá mais saber.             

"Há desacordos e desacordos", escrevia Pissarev sobre o desacordo entre o sonho e a realidade. Meu sonho pode ultrapassar o curso natural dos acontecimentos, ou desviar-se em uma direção para onde o curso natural dos acontecimentos jamais poderá conduzir. No primeiro caso, o sonho não produz nenhum mal, pode até sustentar e reforçar a energia do trabalhador (...). Em tais sonhos, nada pode corromper ou paralisar a força de trabalho; ao contrário. Se o ser humano fosse completamente desprovido da faculdade de sonhar assim, se não pudesse de vez em quando adiantar o presente e contemplar em imaginação o quadro lógico e inteiramente acabado da obra que apenas se esboça em suas mãos, eu decididamente não poderia compreender o que leva o ser humano a empreender a realizar vastos e fatigantes trabalhos na arte, na ciência e na vida prática (...).
O desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo se, cada vez que sonha, o ser humano acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral, trabalha conscientemente para a realização de seu sonho.
Quando existe contato entre o sonho e a vida, então tudo vai bem.
Infelizmente, há poucos sonhos dessa espécie em nosso movimento. E a culpa é sobretudo de nossos representantes da crítica legal e do "seguidismo" ilegal, que se gabam de sua ponderação, de seu senso do concreto.  

A vontade última é a de estar verdadeiramente presente. De tal modo que o instante vivido pertencesse a nós e nós a ele e fosse possível dizer: "Dure eternamente!". Eis o desejo do Fausto. 

Grandes livros - 1984


George Orwell


Ontem assisti ao filme.
É impactante.