A paixão de Ana



Imagina ter câncer na alma?
Parte meditativa de Max Von Sydon:

As pessoas sabem intuitivamente o que é certo ou errado.
Falhamos, mas acho que podemos aspirar a perfeição espiritual.
Complicações que a seu turno "causarão terríveis distúrbios mentais. Distúrbios físicos e violentos atos psicológicos".
É como um sonho. Querer se mover mais. Não pode!
Ao mesmo tempo, uma muralha cresceu. Não posso dizer ou mostrar que estou feliz.
Sei que esta é você, mas não posso alcançá-la. Compreende?
Estou do lado de fora da muralha. Me fechei do lado de fora. Eu fugi. Agora estou muito distante...
É estranho. Quero ser caloroso, delicado e vivo. Quero fazer um movimento. Mas você sabe quão receoso.
Estou receoso pela humilhação. É uma interminável miséria. Fui aceitando humilhações e as deixei penetrarem em mim. Pode entender?
É absurdamente terrível ser um fracasso.
As pessoas pensam que têm o direito de lhe dizer o que fazer. O desprezo das boas intenções delas. Aquele leve desejo de atropelar alguma coisa viva.
Não estou morrendo. É melodramático. Mas vivo sem o auto-respeito. Eu sei - isso soa ridículo, pretensioso! A maioria das pessoas vivem sem um senso de auto-estima. Humilhadas de coração, asfixiadas e maltratadas... Elas estão vivas e isso é tudo o que sabem. Sabem que não têm outra alternativa. Mesmo que tenham, jamais estenderão a mão para isso.
Pode-se adoecer de humilhação?
Ou ela é uma doença que todos temos que contrair?
Falamos muito sobre liberdade.
Não será a liberdade um veneno para qualquer um que é humilhado?
Ou essa palavra é uma droga, que o humilhado usa até ser capaz de incorporá-la?
Eu tenho vivido com isso. Eu desisti. Não posso suportá-la mais. Os dias se arrastam.
Estou sufocado pela comida, pela merda que expulso, pelas palavras que digo!
Pela luz do dia que toda manhã me grita para levantar. Pelo sono que é só de sonhos de perseguição. Ou pela escuridão que farfalha com ruídos de fantasmas e memórias.
Já lhe ocorreu que quanto pior estão as pessoas, menos elas reclamam. No final, elas estão totalmente caladas. São criaturas vivas, com nervos, olhos e mãos - grandes exércitos de vítimas do carrasco.
A luz que aumenta e cai pesadamente. O frio que chega. A escuridão. O calor. O cheiro. Estão todos silentes!
Não podemos jamais deixar daqui.
Não acredito no movimento. É muito tarde.
Muito tarde para tudo!      





Mais um filme forte de Ingmar Bergman. 1969.
Fui pesquisar argumentos que me levassem a perceber com mais clareza o final do filme e encontrei uma resenha muito eficiente de Emmanuela (cinemapelaarte).
É um desses filmes em que é necessário saber, de antemão, informações sobre o diretor. Ao contrário, pode-se deixar de perceber detalhes e parte do argumento filosófico da história.

“Minha concepção da existência continua sendo esta: existe uma maldade no ser humano, virulenta e terrível, que não pode ser explicada, e de que, entre todos os animais, só ele é capaz. Uma maldade irracional que não obedece a nenhuma lei. Cósmica. Sem motivo. E não há nada que o homem tema tanto como justamente a maldade incompreensível, inexplicável.” — Ingmar Bergman



Transparente é a liberdade de Ingmar Bergman para experimentar nesse filme que sucede a incursão do diretor no universo irracional da guerra. Querendo desafiar a si mesmo, solucionou problemas relativos ao roteiro durante a filmagem de "A Paixão de Ana" (1969), adotou o improviso, fez um uso não convencional das cores e inseriu planos não diegéticos que elidem qualquer barreira entre realidade e ficção — Max von Sydow, Bibi Andersson, Erland Josephson e Liv Ullmann falam sobre peculiaridades de seus personagens após o som da claquete; de um plano para outro, o ator despe-se do personagem. Para Bergman, não foi suficiente abordar a questão da violência como fardo maldito da humanidade em apenas um filme. A direção da câmera muda, não importa mais a brutalidade eclodida por fatores políticos. Em “A Paixão de Ana”, a fonte de angústia é inesgotável — crise de identidade, ilusão de felicidade e total incomunicabilidade. Não plenamente satisfeito com “Vergonha” (1968), Bergman faz com que “A Paixão de Ana” seja uma espécie de ramificação do filme anterior. A maldade humana como herança cósmica muito lhe interessa, irreprimível, incompreensível e indefectível. Sem motivo aparente o homem precisa destruir, agredir, verter o sangue de suas vítimas. Não há Deus que possa interferir, somente permanece o silêncio dessa figura sobrenatural (ou quimérica) que não se manifesta. Mistério perpétuo. A suspeita do caráter autobiográfico do filme não parece ser um equívoco. O personagem recluso de Max von Sydow pode muito bem ser um reflexo do próprio cineasta, artista que se sentia íntegro no isolamento que a ilha de Fårö lhe proporcionava. Ainda nessa linha de raciocínio, não podemos ignorar a significância da intromissão de Liv Ullmann na solidão do suposto alter-ego de Bergman. Atriz e diretor envolveram-se em um romance, e a ilha de Fårö mostrou-se perfeita para refúgio dos apaixonados.

Na continuidade das imagens o que mais deslumbra são os rostos, olhos azuis hipnotizantes, faces que tomam posse das expressões de um espírito que soçobra. Andreas Winkelman (Max von Sydow) vive em uma ilha, habitante exclusivo de uma casa espaçosa. Seu comportamento sofre a influência de um trauma do passado, Andreas cumpre pena em seu cárcere ao ar livre. A Ana (Liv Ullmann) do título irrompe na solidão de Andreas, mulher que se apóia em muletas por causa da perna danificada em um acidente, lembrança física da tragédia que matou seu marido e filho. A vida atual de Ana baseia-se em mentiras que adornam um passado doloroso, Ana também é prisioneira, confinada em sua psique repleta de fantasias. Após receber Ana em sua casa para um telefonema, Andreas descobre que ela esqueceu sua bolsa, provavelmente resultado da decepção que sofreu ao telefone. Movido pela curiosidade, Andreas abre a bolsa e descobre uma missiva. As palavras datilografadas são do ex-marido de Ana, declaração cheia de sofrimento do homem que não mais suportava o convívio. Andreas entra em contato com as mágoas de Ana antes mesmo de conhecê-la, examina a ferida da desconhecida com o auxílio de Bergman, que desliza cuidadosamente sua câmera pelas tristes palavras de um excerto da carta. Com preventivo comedimento, Andreas aproxima-se do casal que vive nas redondezas, Eva (Bibi Andersson) e Elis Vergerus (Erland Josephson). Na casa dos mesmos, Ana repousa após o trauma do acidente. Elis é o arquiteto arrogante que mantém uma excêntrica coleção de fotos. Conserva corpos em imagens, coleciona momentos pessoais, mas é incapaz de compadecer-se com a amargura da humanidade. Como o próprio ator diz na entrevista inserida no filme, o sofrimento alheio não tira o sono de seu personagem. Em um cômodo especial, Elis armazena com organização a profusão de retratos, corpos estáticos que jazem em seus respectivos lugares. Perturbada por uma crise de identidade, Eva envolve-se rapidamente com Andreas. Escarlate é a cor que ilumina o encontro dos dois, explosão visual que compensa o desejo um tanto represado. Sangue inocente é espalhado pelo solo da ilha, um massacre de animais perpetrado por um desconhecido apavora a todos. Assim Bergman reafirma sua crença na maldade que compõe a essência do ser humano. Andreas e Ana passam a viver como casal.

Desintegração absoluta, a tal violência física e psicológica que Andreas leu na carta proibida instala-se entre eles. Durante uma sequência de pesadelo, Bergman oferece uma espécie de epílogo de “Vergonha”. Nada superficial. A relação entre “Vergonha” e “A Paixão de Ana” não se circunscreve ao visual. “Em ‘A Paixão de Ana’ o sonho começa onde cessa a realidade de ‘Vergonha’”; “’A Paixão de Ana é, se quisermos, uma variante de ‘Vergonha’. Apresenta o que afinal eu quis mostrar nesse filme — a violência que se manifesta de maneira velada”, essas são declarações de Ingmar Bergman que revertem esse claro traço do entrelace, encontrado no sonho de Ana, em sólida evidência de uma vinculação substancial. Por falar em desintegração, foi nessa época que Ingmar Bergman e Liv Ullmann optaram pela separação, o que por si só levou ressentimento para o processo de filmagem. Na ficção, após o definitivo rompimento, o completo desmoronamento ganha sua representação suprema — o personagem desarvorado está cada vez mais perto, um zoom invasivo enche de grânulos a imagem que consequentemente começa a perder a nitidez; quase perdendo a forma Andreas vai ao chão, não mais um homem e sim um acúmulo de escombros. Ouve-se a voz em off e Bergman confunde-se com Andreas: “Desta vez, chamaram-lhe de Andreas Winkelman...”

“Não temos um Deus externo. Temos uma espécie de Deus dentro de nós” — Ingmar Bergman