Filme - Nada é para sempre



"O vencedor do Oscar Robert Redford captura a majestosa beleza selvagem de Montana e a força da família americana nesta aclamada adaptação das clássicas memórias de Norman Maclean.
Craig Sheffer estrela como o jovem Norman e Brad Pitt como seu irmão Paul, um irresistível jogador determinado a desafiar o mundo.
Crescidos, os dois garotos se rebelam contra os rigores religiosos do pai.
Enquanto Norman canalisa sua rebeldia escrevendo, Paul segue a perigosa trilha da auto-destruição". 1992.
Uma bela obra de arte que mostra o quanto o homem é vulnerável e distinto. Às vezes, fatos inesperados nos tiram o chão. Mas, além de tudo, o que fica é a sensação de que o que realmente importa, é viver o momento da forma mais plena possível. Respire, respire o mais profundo que puder.
Fico feliz que nada seja para sempre.  

"Eu sou o fantasma das águas" (Paul)

Filme - Linha de passe

A vida é o que você faz dela


São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, com seus 19 milhões de habitantes e quilômetros diários de engarrafamento, tem muitas histórias pra contar. Uma delas acontece no coração da cidade e mostra quatro irmãos que buscam reinventar suas vidas.
Reginaldo, o mais novo, procura incansavelmente o pai que não conheceu.
Dario, prestes a completar 18 anos, sonha com a carreira de jogador de futebol.
Dinho, frentista em um posto de gasolina, busca na religião o refúgio de seu passado.
Dênis, o irmão mais velho, já é pai de um filho e ganha a vida como motoboy. Isso, até descobrir que o crime era mais lucrativo e teve um amargo final como resposta.
No centro desta família está Cleuza, 42 anos, grávida do quinto filho. Ela trabalha como empregada doméstica enquanto luta pra manter todos os filhos na linha.
Para viver nesta cidade onde as oportunidades se afunilam, eles contam um com o outro para driblar as dificuldades.
Um filme de Walter Salles e Daniela Thomas. 2008.

O filme faz um retrato do cotidiano de uma família miserável que vive numa favela da cidade grande. Embora condiz com a realidade de muitos, achei um pouco caricato a exposição. Sempre quando mostram as situações de pessoas como estas, exageram nos gestos e nos palavrões. Óbviamente, existem muitas famílias bem pobres mas não é por isso que são miseráveis também em seus atos. É tocante, mesmo em uma "ficção" ver uma mãe grávida que bebe e fuma sem parar. Tem um filho de cada pai e talvez nem saiba quem eles são. Apesar disso, ela tenta educar seus meninos e torce por eles (mesmo que não seja nenhum exemplo). O personagem de Reginaldo é o mais comovente. Um jovem garoto que sonha em ser motorista e ganhar o mundo. Ele perguntava se o seu pai era negro porque ele era o mais moreno da família. Segundo ele, seu pai devia ser um carvão pra que ele tivesse aquela cor. Quando sua mãe pediu pra arrumar a cabeleira, o adolescente respondeu: "Lá cabelo de negro tem jeito!". 
Também temos uma idéia de como funcionam os cultos evangélicos. As orações e a paixão por Jesus. Interessante o pastor afirmar que não devem buscar pelo material e que nada pertence às pessoas, apenas a Jesus e, no entanto, recebe somas de dinheiro daqueles pobrezinhos. Como podem as pessoas não pensarem sobre seus atos? Mas, de alguma forma, parece que aqueles encontros religiosos eram a única forma de escapar de suas realidades e buscar um pouco de alívio. Ou isso, ou a bebida e a marginalidade. 
A parte final do filme foi muito bem concluída. Torci pra que Reginaldo fosse pra bem longe dalí. 
Ande. Ande. Ande.      

Para seres livres

Um amigo muito especial de Curitiba me enviou este texto que penso que todos deveriam ler. Certamente hoje temos muitas informações sobre todos os campos do conhecimento, mas porque não pensar num todo mais consistente. Eis então, a vontade de suscitar um debate mais produtivo.
O texto será distribuido em partes devido sua extensão.
Boa leitura.

Prefácio

Em 1959 Aldous Huxley pronunciou uma série de conferências na Universidade da
Califórnia, Santa Barbara. O curso realizou-se em duas partes, de fevereiro a maio e de setembro a dezembro. O tema foi "A situação humana", como Huxley afirmou numa carta:

"Meu modesto tema é 'A situação humana', e começarei com os fundamentos biológicos — o estado do planeta, população, hereditariedade relacionada com ambiente. Depois, passarei ao rande determinante da civilização moderna — a técnica, em todos os campos da atividade humana, seus efeitos na ordem social e política. Depois, falarei do indivíduo e suas potencialidades, e o que talvez possamos fazer para que se realizem. É um projeto muito vasto — mas vale a pena empreendê-lo, mesmo inadequadamente, como antídoto para a especialização e fragmentação da formação acadêmica"1.

As conferências foram um pouco modificadas para fins de publicação. Omitiram-se algumas repetições, sempre que isso não prejudicasse a clareza nem interferisse na fluência do texto. Todos os preâmbulos às conferências foram deixados de lado. A oitava conferência, intitulada "O futuro está em nossas mãos", foi omitida por praticamente um sumário das precedentes. Sempre que possível, incluímos as referências.

Passaram-se dezoito anos desde que essas conferências foram pronunciadas. Embora parte da informação que nos fornecem esteja superada, deixamos tudo intacto.

Aldous Huxley realizou essas e outras conferências similares em outras instituições (entre elas o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e a Fundação Menninger). A série de Santa Barbara é sem dúvida a mais abrangente, por isso foi escolhida para publicação.
Sou grato a Laura Huxley pelo estímulo e sugestões. Também quero agradecer a Corona Machemer, da Harper & Row, por sua valiosa colaboração.

Piero Ferrucci

1 Huxley, Aldous. "Aldous Huxley to Matthew Huxley, 8 January 1959". In: Letters of
Aldous Huxley. Londres, Chatto & Windus, 1969, p. 860.

Educação integrada
Conferência pronunciada em 9.2.1959.
Como todos sabemos, aprender pouco é algo perigoso. Mas excesso de aprendizado altamente especializado também é uma coisa perigosa, e por vezes pode ser ainda mais perigoso do que aprender só um pouco. Um dos principais problemas da educação superior agora é conciliar as exigências da muita aprendizagem, que é essencialmente uma aprendizagem especializada, com as exigências da pouca aprendizagem, que é a abordagem mais ampla, mas menos profunda, dos problemas humanos em geral.

Esse é, sem dúvida, um problema novo. Meu avô, T. H. Huxley, um homem que jamais se sentia feliz exceto quando tinha três ou quatro empregos de tempo integral de uma só vez, teve entre esses empregos a criação, em 1870, da moderna educação inglesa. Trabalhou bastante em educação elementar e secundária em Londres e também muito fez para transformar a Universidade de Londres numa universidade moderna, quer dizer, uma universidade com alto grau de especialização em vários campos. O interessante é que, no começo de 1890, ele já estava profundamente preocupado com o problema da especialização excessiva. Três anos antes de morrer, elaborou um plano para coordenar vários departamentos especializados da Universidade de Londres, de modo a criar alguma espécie de educação integrada.

Não preciso acrescentar que os planos de meu avô jamais foram executados, e que o problema da educação integrada permanece exatamente o que era — apesar de dizer respeito a todos os que se ligam a esse campo de atividade, e apesar de ter-se efetuado uma série de tentativas de resolvê-lo. Essas tentativas incluíram o simples acréscimo de informações hu-manísticas à informação científica especializada; a coordenação da ciência e humanidades através de uma abordagem histórica, o que tem certos méritos; e os programas dos Cem Grandes Livros, estreitamente relacionados a isso. Não creio que nenhuma dessas tentativas seja plenamente satisfatória. Meu pressentimento é que uma educação integrada ideal exige uma abordagem do tema em termos de problemas humanos fundamentais. Quem somos? Qual a natureza da natureza humana? Como devemos nos relacionar com o planeta em que vivemos? Como viveremos juntos satisfatoriamente? Como devemos desenvolver nossas potencialidades individuais? Qual a relação entre natureza e formação? Se começarmos com esses problemas, e os tornarmos centrais, poderemos reunir informações de uma série bastante grande das disciplinas atualmente separadas.

Penso que provavelmente esse é o único modo de podermos criar uma forma realmente integrada de educação.
Entrementes, porém, essa educação integrada não existe. Aqui, penso, está o motivo pelo qual uma pessoa como eu, que tem o que podemos chamar de ignorância enciclopédica em muitos campos, pode ser útil a uma instituição de aprendizagem altamente especializada como esta. Um homem de letras pode exercer uma função valiosa no mundo, juntando uma porção de assuntos e mostrando as relações entre eles. É uma questão de construir pontes.

Temos uma palavra interessante, "pontifex", ou construtor de pontes. É o termo latino usado para designar os membros do colégio de sacerdotes em Roma, cujo chefe é chamado "pontifex maximus". (Na verdade, a etimologia aceita de "pontifex" provavelmente é falsa. Estou quase certo de que a palavra original não era "pontifex", mas "puntifex", o que, cm linguagem antiga, pré-latina, o oscano, significava aquele que realiza sacrifícios aplacadores. Os romanos traduziram a palavra em sua língua como "pontifex", fazedores de pontes.) Num contexto religioso, "pontifex" significa o que constrói uma ponte entre a Terra e o Céu, entre material e espiritual, entre humano e divino.

Toda a idéia de "pontifex", construtor de pontes, é muito proveitosa, e podemos meditar sobre ela e usá-la de maneira muito produtiva.
No contexto presente, a função do literato é pois, precisamente, construir pontes entre arte e ciência, entre fatos objetivamente observados e experiência imediata, entre moral e avaliações científicas. Há toda sorte de pontes a construir, e é isso que tentarei fazer no decurso destas palestras.
Mas resta um grande problema com o qual o homem de letras se defronta quando tenta
construir pontes. É interessante retroceder na história da literatura e ver que esse problema foi considerado com atenção por Wordsworth, no fim do século XVIII, no prefácio de Lyrical ballads ("Baladas líricas")'. Diz ele que as mais remotas descobertas do químico, do botânico, do mineralogista, não são tema menos adequado'ao poeta do que qualquer outro tema, desde que sejam assuntos interessantes para os seres humanos em geral e possam ser analisados na medida do que fazem ao homem como "ser que goza e sofre"2. Isso é muito verdadeiro. Se os efeitos da ciência devem ser incorporados à arte, precisam tornar-se algo mais do que meras abstrações e generalizações: precisam tornar-se fatos da experiência imediata, que signifiquem algo, fatos com conteúdo emocional. Mas aqui enfrentamos mais uma vez um círculo vicioso, pois, se está claro que os fatos da ciência não podem ser material adequado para poesia e literatura em geral, enquanto não assumirem conotações emocionais, envolvendo-nos como pessoas, também está claro que dificilmente assumirão esse matiz emocional, inserindo-se na sensibilidade humana geral, a não ser que já tenham sido artisticamente expressos — pois é função do artista abrir ao resto da comunidade
vastas áreas de valor e significado. Pode-se dizer que os padrões de emoção e valor da vida humana são criados pelo artista, que encontra expressão e forma verbal adequadas para tornar conhecido e interessante o que antes era desconhecido ou desinteressante. Assim, pegamos o dilema pelos chifres: precisamos de fatos científicos tingidos de emoção antes de podermos avaliá-los inteiramente em termos emocionais. Suponho que o caminho para fora desse círculo vicioso seja a chegada providencial de algum gênio imenso, que romperá esse círculo e de alguma forma criará para nós o aparato verbal necessário para que os fatos e teorias da ciência possam transformar-se em um material apropriado para a arte. Naturalmente não podemos prever como e quando tal gênio aparecerá, mas o vento sopra onde quer e possivelmente esse misterioso construtor de pontes, esse pontifex maximus, algum dia existirá.

Certamente não sou um pontifex maximus, mas um pontifex minimus pode servir por
enquanto. O problema é encontrar um vocabulário adequado com o qual tratar esses problemas. No momento, temos uma grande variedade de vocabulários: o da fala comum, o da prosa literária, o sublime vocabulário da poesia e o vocabulário abstrato da teoria científica (também temos o vocabulário absolutamente catastrófico dos livros escolares, que acho muito penosos de ler. Não admira que, revestidos de tal vocabulário, os fatos e teorias científicas não nos pareçam importantes, a nós, enquanto "seres que gozam e sofrem" — ou talvez os achemos importantes
enquanto causadores de sofrimento, não de gozo).

1Para facilitar a leitura, traduzi no texto os títulos das obras. Mantive porém o original nas notas de rodapé, exceto para obras notoriamente conhecidas em português. (N. da T.)
2 Wordsworth, William, prefácio à segunda edição de Lyrical ballads.
O que por ora nos falta é a forma verbal para expressarmos a combinação do fato e da teoria científicos com nossa experiência direta.

Não há como exagerar a necessidade de palavras. Há uma história muito interessante e
instrutiva ligada ao pintor francês Degas e ao poeta francês igualmente grande, Mallar-mé. Degas costumava escrever versos nas horas livres. Um dia encontrou Mallarmé e disse-lhe: "Mallarmé, é uma coisa terrível, não sei o que está acontecendo. Tenho idéias maravilhosas, mas, quando as escrevo, os versos são muito ruins, e não é realmente poesia". Mallarmé respondeu: "Meu caro Degas, poesia não se faz de idéias, faz-se com palavras". É exatamente essa capacidade de transformar idéias em palavras com um poder de penetração de raios X que identifica o grande homem de letras.

Podemos dizer que todo o programa que precisamos executar, se quisermos obter um ponto de vista integrado, resume-se numa extraordinária passagem de Shakespeare, em que Hotspur diz:
"Mas o pensamento é o escravo da vida, e a vida, o bobo do tempo;
E o tempo, que vigia o mundo inteiro, Precisa ter um fim"1.

É uma dessas coisas fantásticas que encontramos em Shakespeare; em algumas linhas ele esboça toda uma filosofia, e depois passa para outro assunto. "O pensamento é o escravo da vida", não podemos pensar abstratamente sem nos envolvermos como seres fisiológicos, como membros desta comunidade viva no planeta; e "a vida é o bobo do tempo", o tempo que passa corrói as coisas todas e produz mudanças constantes; e ainda assim, "o tempo, que vigia o mundo inteiro, precisa ter um fim", pois existe também um lado espiritual e religioso da vida — o tempo precisa ter um fim
no mundo atemporal e eterno. São esses três mundos — o da abstração e dos conceitos, o da experiência imediata e observação objetiva, e o mundo da visão espiritual — que precisam ser reunidos em qualquer ponto de vista integrador.
1 Shakespeare, William. Henrique IV. Parte I, ato V, cena IV, Unhas 81-83. (Nota da
tradutora: não tentei uma recriação artística dos poemas citados nas conferências, mas apenas transpor as idéias e até certo ponto dar uma noção do seu ritmo.)

Não preciso dizer que é uma proposta bastante difícil. Como poderemos descrever, por exemplo, uma experiência mística? O que precisamos é de uma linguagem que nos permita falar de uma experiência pessoal muito profunda em termos de conceitos filosóficos, em termos de bioquímica e em termos teológicos. No momento esses são três vocabulários totalmente separados e desconectados; nosso problema é descobrir um vocabulário literário, artístico, que nos possibilitará passar sem ruptura grave de um ponto de vista a outro, de um universo do discurso a outro. Quando o problema é colocado numa forma específica como essa, podemos ver o quanto é difícil.

Realmente precisamos de um poeta como Shakespeare — um pontifex maximus — para resolvê-lo por nós. Entrementes, farei o que puder, com meus limitados recursos, para continuar, e verei o que posso fazer para construir pontes.

Troquemos agora nossa metáfora de engenharia por uma metáfora muito expressiva da vida doméstica, e falemos no que se chamou de "celibato do intelecto". O problema de todo o conhecimento especializado é ser uma série organizada de celibatos. Os diversos-assuntos vivem em suas celas monásticas, apartados uns dos outros, e simplesmente não se casam entre si, nem produzem os filhos que deveriam gerar. O problema é tentar arranjar casamentos entre esses vários assuntos, na esperança de produzir uma geração valiosa. E o celibato não existe apenas entre os diferentes aspectos do intelecto; é também um celibato das paixões, um celibato dos instintos. O
tema do isolamento das paixões é um traço muito característico da literatura contemporânea. Se formos assistir a certas peças de teatro — por exemplo, de Tennessee Williams, um dramaturgo de enorme talento, que admiro muito —, veremos um celibato quase absoluto das paixões. Elas existem num estado quimicamente puro, sem nenhuma ligação com o intelecto. Vivem uma existência inteiramente própria. Se tomássemos essas peças como um retrato da vida contemporânea, certamente ficaríamos muito decepcionados, como estive pensando outro dia quando assisti a uma delas, muito bem representada, no teatro. O simples fato de representá-la exigiu uma apaixonada combinação de pessoas usando o intelecto e mantendo a vontade firmemente fixada no tema, que era uma negação completa da realidade, do ponto de vista do qual as paixões são divorciadas da inteligência e das atividades voluntárias dos seres humanos.

De qualquer modo, o que precisamos fazer é arranjar casamentos, ou melhor, trazer de volta ao seu estado original de casados os diversos departamentos do conhecimento e das emoções, que foram arbitrariamente separados e levados a viver em isolamento em suas celas monásticas.

Podemos parodiar a Bíblia e dizer: "Que o homem não separe o que a natureza juntou"; não permitamos que a arbitrária divisão acadêmica em disciplinas rompa a teia densa da realidade, transformando-a em absurdo.

Mas aqui deparamos com um problema muito grave: qualquer forma de conhecimento
superior exige especialização. Precisamos nos especializar para entrar mais profundamente em certos aspectos separados da realidade. Mas se a especialização é absolutamente necessária, pode ser absolutamente fatal, se levada longe demais. Por isso, precisamos descobrir algum meio de tirar o maior proveito de ambos os mundos — aquele mundo altamente especializado da observação objetiva e da abstração intelectual, e aquele que podemos chamar o mundo casado da experiência imediata, no qual nada pode ser apartado. Somos as duas coisas, intelecto e paixão, nossas mentes
têm conhecimento objetivo do mundo exterior e da experiência subjetiva. Descobrir métodos para unir esses mundos separados, mostrar a relação entre eles, é, penso eu, a mais importante tarefa da educação moderna.

Gostaria de citar uma frase muito bela, de uma carta escrita por T. H. Huxley a Charles
Kingsley, por ocasião da morte do filho pequeno de Huxley, de quatro anos de idade. Kingsley escrevera-lhe uma carta de condolências, e meu avô respondeu escrevendo extensamente sobre todo o problema da imortalidade e da posição do cientista no mundo moderno. Ele disse:

"Parece-me que a ciência ensina da maneira mais elevada e firme a grande verdade,
personificada na concepção cristã de uma submissão absoluta à vontade de Deus. Sen-tarmo-nos diante do destino como uma criança pequena, e estarmos preparados para renunciar a qualquer noção preconcebida, seguindo humildemente para seja quais forem os abismos aos quais a natureza nos guia, ou não aprenderemos coisa alguma"'.

Vemos que o processo científico é intrinsecamente um processo ético, um lado da ciência muito pouco enfatizado no presente. A humildade do cientista diante do fato e da observação é de tremenda importância do ponto de vista ético. Viu-se isso claramente no tempo de Francis Bacon, que, embora não sendo um cientista muito sério, expôs uma série de idéias gerais de grande significação para o desenvolvimento da ciência nos séculos XVII e XVIII. Bacon era hostil aos filósofos escolásticos, até mesmo aos filósofos gregos, que se atreviam a fazer afirmações sobre o universo sem se ciarem ao trabalho de descobrir o que os fatos realmente eram. Há uma porção de
passagens notáveis em Bacon, onde ele fala sobre a iniqüidade desses filósofos. Fala de Platão e Aristóteles como criminosos (a hostilidade de Bacon em relação a Platão e Aristóteles era bastante injusta. Afinal, Aristóteles foi um importante observador científico). Há uma famosa passagem em Advancement of learning ("Progresso da aprendizagem") onde ele diz que os escolásticos eram como aranhas tecendo teias com fios que saíam de suas próprias cabeças, sem consideração para com o que acontecia no mundo, e que as teias eram admiráveis pela fi-nura do fio e pelo artesanato, mas sem qualquer substância ou fruto2. Da mesma forma, no prefácio a um de seus livros menores, A história dos ventos, fala de maneira muito eloqüente e intensa sobre a qualidade ética da ciência:
1 Huxley, Leonard. "Thomas H. Huxley to Charles Kingsley, 23 Sep-tember 1860". In: Life and letters of Thomas Henry Huxley. Nova York, Appleton, 1900. v. l, p. 235. 2 Bacon, Francis.
Advancement of learning. Ato l, cena IV, linha 3.

"Por isso, se tivermos alguma humildade em relação ao Criador; se tivermos alguma
reverência e amor pelas Suas obras; se tivermos alguma caridade para com os homens ou algum desejo de aliviar suas misérias e necessidades; se tivermos algum amor pelas verdades naturais; alguma aversão pelas trevas; e algum desejo de purificar o entendimento; a humanidade deverá ter o maior interesse e desejo de, pelo menos por algum tempo, deixar de lado suas filosofias prepósteras, fantásticas e hipotéticas (que cativaram a experiência e infantilmente triunfaram sobre as obras de Deus); agora, porém, com submissão e veneração, condescendem em pegar e examinar o
Volume da Criação; meditar algum tempo sobre ele; e, fazendo operar uma mente bem purgada de opiniões, ídolos e falsas noções, familiarizar-se com ele"1.

Essa é uma passagem esplêndida e sobre a qual se devia meditar, porque é exatamente a relutância em aceitar noções preconcebidas e em transformar a sua própria opinião numa tese e não numa hipótese de trabalho que identifica um cientista genuíno e constitui a natureza ética essencial da atividade científica.

Bacon tinha certeza de que um dos valores da ciência estava em seus frutos, que ela poderia fazer muito para abrandar a indigência e os sofrimentos do homem. Sabemos que é realmente assim. Mas a ciência pode fazer também outras coisas, coisas das quais hoje estamos dolorosamente conscientes. Como Bacon jamais se cansou de dizer, conhecimento sem amor pode ser muito corrupto, até mau. Ele censurava filósofos como Platão e Aristóteles, não apenas porque lhes faltava humildade para estudar fatos objetivos, e basear seus raciocínios sobre esses fatos, mas porque
tinham perseguido o conhecimento unicamente pela satisfação intelectual, não por amor ou para ajudar os seres humanos.

Agora, o sapato passou para o outro pé: os vaidosos filósofos da atualidade são membros da escola científica que esqueceu a humildade científica. Todos estamos familiarizados, por exemplo, com a extrema arrogância dos primeiros behavioristas. Lendo alguns dos primeiros escritos de J. B.

Watson, ficamos absolutamente espantados de ver que qualquer pessoa que se dissesse cientista pudesse fazer afirmações tão mirabolantes e ignorar uma parte tão grande da experiência humana. A "cientistas" desse tipo, Bacon teria certamente feito a acusação de serem: a) presunçosos e b) sem amor, única coisa que pode tornar precioso e valioso o conhecimento.
1 Bacon, Francis. Silva silvarum: the phaenomena of the universe. Londres, Knapton,
1735, v. 3, p. 5.

Nosso problema é reunir de alguma forma os diferentes aspectos do mundo assim como o conhecemos, recriar o estado de união com o qual nos familiariza a experiência direta. Pois estamos familiarizados com o fato de que o mundo dos conceitos e abstrações é equilibrado pelo mundo da experiência imediata, e que a experiência interior existe simultaneamente com a descrição objetiva da natureza construída sobre inferências. Mas qual a relação filosófica entre esses dois lados do nosso conhecimento, interior e exterior? Inclino-me a pensar que cientistas com mente filosófica, como Max Planck, estão certos ao imaginar que os dois mundos, abstrato e imediato, são apenas aspectos da mesma realidade, que a realidade básica é um monismo neutro, visto de um lado como física atômica (por exemplo) e de outro como experiência imediata de valor, amor, emoção. Não podemos entrar nesse tema no momento, mas eu queria mencioná-lo e frisar que a construção dessa ponte fundamental é um problema muito, muito urgente em nosso mundo.

Deliberadamente mantive este curso o mais vago e geral que me foi possível, para não
avançar demais nem fingir que sei demais. Nossa tarefa será analisar vários aspectos da situação humana, para vermos como se pode construir pontes entre fatos e valores. Começarei com uma consideração sobre o homem em relação ao planeta, pois vivemos neste planeta e, gostemos ou não, temos de nos ajeitar com isso indefinidamente. Lamento dizer que toda essa história de ir a Marte e coisas assim me parece um absurdo. É muito mais importante vermos o que podemos fazer com a Terra, e infelizmente o que estamos fazendo com ela é desastroso. Tentarei primeiro mostrar o que estamos fazendo com nosso ambiente planetário, e considerar os corolários desses fatos, e ver que Weltanschauung1 nos ajudaria a remediá-los. Depois falarei sobre a relação entre as fontes de que dispomos agora e aquelas de que disporemos no futuro. Construirei uma tênue ponte hipotética até o futuro.

Depois disso, penso que deveremos nos voltar para os problemas estritamente biológicos do indivíduo, discutir o homem do ponto de vista da hereditariedade e do ponto de vista do seu meio ambiente, e tentar estabelecer uma espécie de equilíbrio entre esses dois fatores que influenciam tão profundamente nossa existência. O problema do homem na sociedade virá a seguir, e nele gastarei algum tempo discutindo o que me parece ser o fator sociológico mais importante dos tempos modernos: o crescimento da tecnologia e o que podemos chamar de tecnicização de todos os aspectos da vida humana. Depois passarei a outros aspectos da vida social, e espero, no momento devido, conseguir chegar ao problema do indivíduo, ao problema das potencialidades humanas e do que pode ser feito para que se realizem aquelas que de momento permanecem em grande parte latentes em muitas pessoas. Não é preciso dizer que nessa relação haverá debates sobre arte e problemas da criação e compreensão.
1Visão de mundo." (N. do E.)

Andaremos muito longe nessa busca de pontes. Quando chegarmos ao fim, teremos coberto uma grande parte de terreno e também estaremos muito entediados com o que tenho a dizer, mas felizmente poderei então sumir discretamente.