O caco como cultura



Excerto é sinônimo de trecho ou fragmento, parte de um texto maior. É uma seleção do todo, algo que recortamos com determinado objetivo. O excerto facilita, mas é tijolo de um muro maior. 

Sempre cultivamos o excerto. Para fins didáticos e de compreensão, o extrato funciona muito bem. Na Grécia antiga, os coletadores de ideias eram chamados polímatas, termo que, depois, foi associado ao dono de um saber universal. No século 12 da Cristandade, Pedro Lombardo compilou quatro livros de sentenças (Libri quattuor sententiarum), um manual de citações bíblicas e de teólogos. A obra alcançou imenso sucesso nas nascentes universidades ocidentais. O texto ajudou a definir o modelo de professor usual da Baixa Idade Média: um comentarista de pequenos trechos, alguém capaz de inserir cada frase num contexto maior e encontrar nexos entre ideias esparsas.

As frases de Pedro Lombardo têm muitas vantagens. A maior é que, com menos esforço, permite ao leitor conhecer mais autores. Ler a totalidade dos escritos de Agostinho é tarefa penosa. A Bíblia é vasta. Os excertos possibilitam, em poucos momentos de leitura, fazer um voo panorâmico por muitas fontes. Os pedaços selecionados trazem ao leitor a possibilidade do acesso mais rápido e eficaz. É um atalho para um conhecimento, mas, talvez, não para o conhecimento. 

Há lacunas irreparáveis no processo. A citação é sempre uma parte. Ela omite a construção da ideia feita pelo autor. O trecho recorta, esfarela e joga uma migalha ao leitor incauto. Outro problema: coletâneas de frases elidem um autor oculto, como o artista ao escolher determinadas pedras para compor o desenho do mosaico. Pedro Lombardo elabora um sistema teológico só com frases alheias. A unidade, porém, é dada pelo coletador. Quem cita, seleciona. Se alguém contesta a validade do trecho, o polímata pode afirmar: é a Bíblia! É argumento de autoridade, infalível. O excerto oculta o vulto de um autor que não está enunciado.

A citação pode claudicar por incompletude. “Deus não existe”, assegura o salmo 53. Sim, meus piedosos leitores, está na Bíblia: DEUS NÃO EXISTE. Porém, o versículo seguinte (ou, dependendo da tradução, o prévio) esclarece: “Diz o insensato no seu coração”. Acabamos de ver um exemplo de má citação. Mesmo que o citador seja bem-intencionado, todo recorte se aproxima dessa contradição. 

Ao resumir e ao citar, tenho de deixar uma moeda de imposto no altar da traição. Se usei um pequeno trecho traduzido de outra língua, o imposto dobra de valor. O autor mais insuspeito passa por esse trajeto. Os fariseus eram experimentados intérpretes da lei. Para testar Jesus, fizeram a pergunta sobre a síntese de toda a Bíblia. O Mestre respondeu que deveríamos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. (Mateus 22, 37-40). Ora, a síntese (derivada do pensamento do rabino Hilel) omite coisas importantes, como a lei do olho por olho e do dente por dente (Talião). Ao resumir, Jesus contraria ou supera tradições fundamentais da Lei Mosaica.

Eu, ao sintetizar os versículos do evangelho, passei por cima de uma sutileza importante: a ordem de amar a Deus de todo o coração, alma e pensamento (distinção fundamental na ideia). Também, ao fazer o excerto da afirmação de Jesus, deixei de inserir a passagem seguinte, que define a figura do Cristo, o título teológico que define a autoridade capaz de ir além da lei mosaica. Por fim, citei em português uma frase que teria sido dita em aramaico, traduzida para o grego e, depois, para o latim para chegar, enfim, ao idioma de Camões. Isso foi só para exemplificar o que significa citar e fazer excertos.

Há muitas moedas no altar da traição. A cultura ocidental foi se democratizando do ponto de vista numérico. A comunicação contemporânea acelerou o excerto. Trechos apócrifos, ou seja, de autoria falsamente atribuída, circulam como legítimos filhos da pena de Shakespeare ou de Jorge Luis Borges. Arnaldo Jabor já rejeitou a paternidade de muitos que circulam no cyberspace. 

Faço palestras sobre grandes obras como Hamlet. Logo em seguida, vejo frases do príncipe atribuídas a mim. Como afirmei que “a consciência nos torna covardes”, vejo a frase brotar de todos os lados, atribuindo a autoria a este colunista. Pobre bardo, acabou no Irajá!

A bibliografia de um curso superior é, quase sempre, uma coletânea de capítulos variados, raramente um livro completo. Versos de Fernando Pessoa viram trechinhos de uso cotidiano. Versículos bíblicos transmutam-se em pílulas extraídas do contexto. Para piorar, a partir de uma pequena frase de um vídeo, os leitores rápidos enquadram o autor em gavetas. Matizes são ignorados e contradições aplainadas. Somos o mundo do excerto, a civilização do caco, o universo do fragmento. Somos a época na qual a viagem da parte ao todo está em colapso. O caco é o todo. Surge um universo de caleidoscópio com a beleza fátua definida por espelhos de ilusão. Bem-aventurados os que ainda encaram um livro completo.

Leandro Karnal - O Estadão (14 agosto de 2016)

Filme Palermo Shooting






Direção: Wim Wenders
2008

Finn é um fotógrafo alemão que está cada vez mais distante de seu trabalho e da realidade em que vive. Não consegue dormir e tem sonhos cada vez mais reais, que o perseguem profundamente. Após uma fútil sessão de fotos de moda, que deixam ele e a modelo profundamente decepcionados, Finn vai a Palermo para fazer, com a mesma modelo, um novo ensaio fotográfico.

Na Itália, ele decide tirar férias para se reencontrar com seu trabalho e com sua vida. Flávia, uma restauradora italiana, aparece e se envolve com o fotógrafo, que começa a ser perseguido por uma figura misteriosa que não se sabe se é imaginária ou real.

O filme contou com o auxílio de dois gênios do cinema que nos deixaram durante o processo: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, que são devidamente homenageados no final da projeção. O filme foi apresentado na 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, contando com a presença do diretor em uma das sessões. Wenders apresenta com este trabalho uma série de questões que dizem respeito à maioria dos habitantes de grandes cidades e profissionais de áreas de grande competitividade. O protagonista está envolvido completamente por seu trabalho, porém não sente mais nenhuma paixão ou interesse por ele, realizando-o de forma mecânica ou até mesmo delegando tarefas essenciais aos seus assistentes.

A cobrança interna e externa sofrida por Finn o leva a um isolamento profundo, fazendo com que ele mantenha relações superficiais com a maioria das pessoas à sua volta. Outro aspecto de seu estresse é sua insônia e, ligada a esta, seus sonhos e alucinações. O grande conflito na vida de Finn é como lidar com a morte e, especialmente, com a morte de sua mãe. Os problemas do protagonista são tratados de forma bastante sutil ao longo do filme. A morte da mãe é mencionada somente uma vez pelo protagonista e só aparece novamente em alguns de seus sonhos; não há em nenhum momento uma repetição pedante para que os problemas sejam fixados na mente do espectador. Os sonhos e alucinações, peças chave no processo narrativo estabelecido, recebem um tratamento visual muito interessante. Há uma forte influência surrealista na construção da estética dos sonhos. Logo na primeira cena do filme essa influência é flagrante: Finn, pendurado em um relógio, despenca no vazio até aparecer em frente a sua janela contemplando a cidade. A caracterização do espaço também é influenciada pelo surrealismo: em uma seqüência de sonhos que o fotógrafo tem em Palermo, ele ora aparece dormindo em uma minúscula cama, ora em uma cama gigante. Há também, em seus sonhos, um toque de expressionismo; longas sombras e paisagens fortemente contrastadas concluem a caracterização.

A trilha musical aparece, como de costume na obra de Wenders, com um papel narrativo muito importante. Em diversos momentos do filme Finn se isola do mundo, e essa fuga é construída com a música. Ao colocar os fones de ouvido, a música que o protagonista ouve toma conta de tudo, nos privando de qualquer informação exterior a ela. Mesmo nos momentos em que a música não vem dos fones de ouvidos, ela ajuda a construir um clima de introspecção e isolamento.

A distância da realidade e de seu trabalho também aparece de uma maneira muito sutil: em sua viagem à Palermo, Finn volta a fotografar, hábito que tinha praticamente abandonado em Düsseldorf, deixando-o para seus assistentes e o programa de edição utilizado por eles. Durante essa volta Finn mostra que perdeu a prática perdendo uma série de fotos de rua. Com isso, Wenders consegue estabelecer uma delicada crítica aos fotógrafos e cineastas que ficam fechados em seus estúdios. Enquanto criam seu universo em um quarto, a vida passa por eles e quando, por ventura, decidem capturá-la, ela escapa pelo vão de seus dedos.

A fotografia também aparece com um papel importante na narrativa. É com ela que o diretor cria uma oposição entre Alemanha e Itália. Düsseldorf é fria, metálica, a foto é pouco saturada e levemente azulada criando um clima triste e inóspito para a cidade. Palermo é retratada de maneira completamente distinta: a fotografia é quente e saturada, aparecem muitos tons de vermelho e verde, dando vida para a cidade e criando um clima muito mais agradável do que o transmitido por Düsseldorf.

O desenvolvimento do conflito de Finn ocorre em Palermo. Seus sonhos começam a ser fundir com a realidade. Uma figura encapuzada tenta matá-lo com um arco e flecha em vários momentos. O fotógrafo sempre é atingido e descobre em seguida que se tratava de um sonho. Finn sempre tenta fotografá-la para ter uma prova de sua existência. Em um momento, ao analisar uma de suas fotos no computador ele encontra a figura.

Essa mistura de sonho com realidade aparece como o ponto mais frágil do filme. Ao contrário da sutileza costumeira, Wenders cria um conflito essencialmente de ação e acaba caindo em um dos chavões mais antigos da narração: a quebra de expectativa pelo despertar.

Apesar de ser a grande falha do filme, a interação entre sonho e realidade propicia um dos grandes momentos da história. A figura que persegue Finn é a Morte. No último sonho retratado na narrativa, o fotógrafo se encontra com ela e com isso surge uma das caracterizações mais interessantes da Morte no cinema. A Morte de Wenders lembra em alguns aspectos a de Bergman em O Sétimo Selo. Careca e trajando uma longa túnica, dessa vez cinza, a Morte é sagaz e irônica. Porém a grande diferença, que dá o charme do personagem, é o tema da discussão dos dois. A conversa passa por vários tópicos, no entanto, o que mais chama a atenção é a opinião da Morte sobre a fotografia digital: “o homem não resiste à possibilidade de manipulação, se sente como um Deus”. A fala da morte devolve ao filme o clima que tinha se perdido com a perseguição entre Morte e Finn nas ruas de Palermo.

Aparece, porém, no final da fala da Morte, a outra falha de Palermo Shooting. É decretado que só se é vivo quando não se teme a Morte e que só assim as pessoas podem se ver de maneira pura e verdadeira. Assim, a mensagem que fica é a de um moralismo intenso.

(Felipe Abreu - rua.ufscar.br)



Rumo ao Sopro

        
        Trecho de leitura - Arthur Schopenhauer - O mundo como vontade e como representação

        Em todo grau que o conhecimento brilha, a Vontade aparece como indivíduo.
        No espaço e no tempo infinitos o indivíduo humano encontra a si mesmo como finito, em consequência, como uma grandeza desvanecendo se comparada àquelas, nelas imergindo e, devido à imensidão sem limites delas, tendo sempre apenas um QUANDO e um ONDE relativos de sua existência, não absolutos. Pois o lugar e duração do indivíduo são partes finitas de um infinito, de um ilimitado. Sua existência propriamente dita se encontra apenas no presente, e seu escoar sem obstáculos no passado é uma transição contínua na morte, um sucumbir sem interrupção; visto que sua vida passada, tirante suas eventuais consequências para o presente, e tirante também o testemunho sobre sua vontade ali impresso, já terminou por inteiro, morreu e não mais existe.
        Eis porque, racionalmente, tem de lhe ser indiferente se o conteúdo daquele passado foram tormentos ou prazeres. O presente, entretanto, em suas mãos sempre se torna o passado; já o futuro é completamente incerto e sempre rápido. Nesse sentido, sua existência, mesmo se considerada do lado formal, é uma queda contínua do presente no passado morto, um morrer constante. Se vemos a isso também do ponto de vista físico, é então manifesto que, assim como o andar é de fato uma queda continuamente evitada, a vida de nosso corpo é apenas um morrer continuamente evitado, uma morte sempre adiada.
        Por fim, até mesmo a atividade lúcida de nosso espírito é um tédio constantemente postergado.
Cada respiração nos defende da morte que constantemente nos aflige e contra a qual, desse modo, lutamos a cada segundo, bem como lutamos nos maiores espaços de tempo mediante a refeição, o sono, o aquecimento corpóreo, etc. Por fim, a morte tem de vencer, pois a ela estamos destinados desde o nascimento e ela brinca apenas um instante com sua presa antes de devorá-la. Não obstante, prosseguimos nossa vida com grande interesse e muito cuidado, o mais longamente possível, semelhante a alguém que sopra tanto quanto possível até certo tamanho uma bolha de sabão, apesar de ter certeza absoluta de que vai estourar.
        Vimos na natureza destituída de conhecimento que a essência íntima dela é um esforço interminável, sem fim, sem repouso, o que nos aparece muito mais distintamente na consideração do animal e do homem. Querer e esforçar-se são sua única essência, comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer, entretanto, é necessidade, carência, logo, sofrimento, ao qual consequentemente o homem está destinado originariamente pelo seu ser. Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma se lhe tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para qui e para acolá, entre a dor e o tédio, os quais em realidade são seus componentes básicos. Isso também foi expresso de maneira bastante singular quando se disse que, após o homem ter posto todo sofrimento e tormento no inferno, nada restou para o céu senão o tédio.
        Entretanto, o esforço contínuo que constitui a essência de cada fenômeno da Vontade adquire nos graus mais elevados de objetivação dela seu primeiro e mais universal fundamento, pois, aqui, a Vontade aparece num corpo vivo com o seu mandamento férreo de alimentação. O que dá força a este mandamento é justamente que o corpo é apenas a Vontade de vida mesma, objetivada. O homem, como objetivação perfeita da Vontade, é, em conformidade com o dito, o mais necessitado de todos os seres. Ele é querer concreto e necessidade absoluta, é uma concretização de milhares de necessidades. Com estas, encontramo-lo sobre a face da terra abandonado a si mesmo, incerto sobre tudo, menos em relação à sua carência e miséria. Em conformidade com isso, os cuidados pela conservação daquela existência, em meio a exigências tão severas que se anunciam todos os dias, preenchem via de regra a vida do homem. A isso logo se conecta imediatamente uma segunda exigência, a da propagação da espécie. Entrementes, ameaçam-no de todos os lados perigos os mais variados, para escapar dos quais precisa de contínua vigilância. Com passo cuidadoso, tatear angustiante, segue o seu caminho, enquanto milhares de acasos, milhares de inimigos lhe preparam emboscadas. Assim já caminhava no estado selvagem, assim caminha agora na vida civilizada; não há segurança alguma para ele.
        
        "Ah, em que trevas da existência, em que grandes perigos,
        é a vida despendida, pelo tempo em que dura".

        A vida da maioria das pessoas é tão-somente uma luta constante por essa existência mesma, com certeza de ao fim serem derrotadas. O que as faz, por tanto tempo, travar essa luta árdua não é tanto amor à vida, mas sim temor à morte, que, todavia, coloca-se inarredável no pano de fundo, e a cada instante ameaça entrar em cena. A vida mesma é um mar cheio de escolhos e arrecifes, evitados pelo homem com grande precaução e cuidado, embora saiba que, por mais que seu empenho e arte o leve a se desviar com sucesso deles, ainda assim, a cada avanço, aproxima-se do total, inevitável, irremediável naufrágil, sim, até mesmo navega direto para ele, ou seja, para a MORTE. Esta é o destino final da custosa viagem e, para ele, pior que todos os escolhos que evitou.
        Ao mesmo tempo, contudo, é bastante digno de nota que, de um lado, os sofrimentos e aflições da vida podem tão facilmente aumentar em tal intensidade que a morte mesma, de cuja fuga toda a vida consiste, é desejável e o homem voluntariamente a abraça; de outro, por sua vez, tão logo a necessidade e o sofrimento deem algum descanso ao homem, de imediato o tédio se aproxima tanto que necessariamente ele precisa de passatempos. O que mantém todos os viventes ocupados e em movimento é o empenho pela existência. Quando esta lhes é assegurada, não sabem o que fazer com ela. Por conseguinte, a segunda coisa que os coloca em movimento é o empenho para se livrarem do lastro da existência, torná-la não sensível, "matar o tempo", isto é, escapar do tédio. Daí vermos quase todos os homens, uma vez seguros contra a miséria e as preocupações e após terem finalmente se livrado de todos os outros lastros, se tornarem um peso para si mesmos e olharem a cada hora morta como um ganho, portanto toda abreviação daquela vida cuja manutenção a mais longa possível tinha sido objeto de todos os seus esforços. De modo algum o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro desespero no rosto. Ele faz seres, que se amam tão pouco como os humanos, frequentes vezes procurarem-se uns aos outros, e torna-se assim a fonte da sociabilidade. Também em toda parte, por meio da prudência estatal, são implementadas medidas públicas contra o tédio, como contra outras calamidades universais; porque esse mal, tanto quanto seu extremo oposto, a fome, pode impulsionar o homem aos maiores excessos: o povo precisa de "Pão e circo". O rígido sistema penitenciário da Filadélfia torna, pela solidão e a inatividade, o mero tédio um instrumento de punição: algo tão terrível que já levou detentos ao suicídio. Ora, assim como a necessidade é a praga do povo, o tédio é a praga do mundo abastado. Na vida civil o tédio é representado pelo domingo, e a necessidade pelos seis dias da semana.
        Portanto, entre querer e alcançar, flui sem cessar toda a vida humana. O desejo, por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina a excitação, porém o desejo, a necessidade aparece em nova figura; quando não, segue-se o langor, o vazio, o tédio, contra os quais a luta é tão atormentadora quanto contra a necessidade. Quando desejo e satisfação se alternam em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso da vida o mais feliz possível. Aquilo que se poderia nomear ao lado mais belo e a pura alegria da vida, precisamente porque nos arranca da existência real e nos transforma em espectadores desinteressados diante dela, é o puro conhecimento que permanece alheio a todo querer; é a fruição do belo, a alegria autêntica na arte. Mas mesmo isso requer dispositivos raros e cabe apenas a pouquíssimos e, mesmo para estes, é um sonho passageiro. Ademais, justamente as elevadas faculdades espirituais desses poucos os tornam suscetíveis a sofrimentos bem maiores que aqueles que os obtusos jamais podem sentir, e os coloca, dessa forma, solitários entre seres marcadamente diferentes, pelo que, ao fim, as coisas se equilibram. Todavia, para a maioria dos homens as fruições intelectuais são inacessíveis. Eles são quase incapazes de alegria no puro conhecimento: estão completamente entregues ao querer. Se, portanto, algo lhes granjeia a simpatia e deve ser INTERESSANTE (o que já se encontra na significação da palavra), tem de algum modo de lhes estimular a VONTADE, mesmo que só numa relação distante, situada só nos limites da possibilidade. Vontade que jamais pode ficar fora de jogo, porque a existência desses homens está mais no querer do que no conhecer: ação e reação são seu único elemento
        Não importa o que a natureza ou a sorte tenham feito, não importa aquilo que alguém é ou aquilo que alguém tem: a dor essencial à vida nunca se deixa eliminar.
        




          

A paixão de Ana



Imagina ter câncer na alma?
Parte meditativa de Max Von Sydon:

As pessoas sabem intuitivamente o que é certo ou errado.
Falhamos, mas acho que podemos aspirar a perfeição espiritual.
Complicações que a seu turno "causarão terríveis distúrbios mentais. Distúrbios físicos e violentos atos psicológicos".
É como um sonho. Querer se mover mais. Não pode!
Ao mesmo tempo, uma muralha cresceu. Não posso dizer ou mostrar que estou feliz.
Sei que esta é você, mas não posso alcançá-la. Compreende?
Estou do lado de fora da muralha. Me fechei do lado de fora. Eu fugi. Agora estou muito distante...
É estranho. Quero ser caloroso, delicado e vivo. Quero fazer um movimento. Mas você sabe quão receoso.
Estou receoso pela humilhação. É uma interminável miséria. Fui aceitando humilhações e as deixei penetrarem em mim. Pode entender?
É absurdamente terrível ser um fracasso.
As pessoas pensam que têm o direito de lhe dizer o que fazer. O desprezo das boas intenções delas. Aquele leve desejo de atropelar alguma coisa viva.
Não estou morrendo. É melodramático. Mas vivo sem o auto-respeito. Eu sei - isso soa ridículo, pretensioso! A maioria das pessoas vivem sem um senso de auto-estima. Humilhadas de coração, asfixiadas e maltratadas... Elas estão vivas e isso é tudo o que sabem. Sabem que não têm outra alternativa. Mesmo que tenham, jamais estenderão a mão para isso.
Pode-se adoecer de humilhação?
Ou ela é uma doença que todos temos que contrair?
Falamos muito sobre liberdade.
Não será a liberdade um veneno para qualquer um que é humilhado?
Ou essa palavra é uma droga, que o humilhado usa até ser capaz de incorporá-la?
Eu tenho vivido com isso. Eu desisti. Não posso suportá-la mais. Os dias se arrastam.
Estou sufocado pela comida, pela merda que expulso, pelas palavras que digo!
Pela luz do dia que toda manhã me grita para levantar. Pelo sono que é só de sonhos de perseguição. Ou pela escuridão que farfalha com ruídos de fantasmas e memórias.
Já lhe ocorreu que quanto pior estão as pessoas, menos elas reclamam. No final, elas estão totalmente caladas. São criaturas vivas, com nervos, olhos e mãos - grandes exércitos de vítimas do carrasco.
A luz que aumenta e cai pesadamente. O frio que chega. A escuridão. O calor. O cheiro. Estão todos silentes!
Não podemos jamais deixar daqui.
Não acredito no movimento. É muito tarde.
Muito tarde para tudo!      





Mais um filme forte de Ingmar Bergman. 1969.
Fui pesquisar argumentos que me levassem a perceber com mais clareza o final do filme e encontrei uma resenha muito eficiente de Emmanuela (cinemapelaarte).
É um desses filmes em que é necessário saber, de antemão, informações sobre o diretor. Ao contrário, pode-se deixar de perceber detalhes e parte do argumento filosófico da história.

“Minha concepção da existência continua sendo esta: existe uma maldade no ser humano, virulenta e terrível, que não pode ser explicada, e de que, entre todos os animais, só ele é capaz. Uma maldade irracional que não obedece a nenhuma lei. Cósmica. Sem motivo. E não há nada que o homem tema tanto como justamente a maldade incompreensível, inexplicável.” — Ingmar Bergman



Transparente é a liberdade de Ingmar Bergman para experimentar nesse filme que sucede a incursão do diretor no universo irracional da guerra. Querendo desafiar a si mesmo, solucionou problemas relativos ao roteiro durante a filmagem de "A Paixão de Ana" (1969), adotou o improviso, fez um uso não convencional das cores e inseriu planos não diegéticos que elidem qualquer barreira entre realidade e ficção — Max von Sydow, Bibi Andersson, Erland Josephson e Liv Ullmann falam sobre peculiaridades de seus personagens após o som da claquete; de um plano para outro, o ator despe-se do personagem. Para Bergman, não foi suficiente abordar a questão da violência como fardo maldito da humanidade em apenas um filme. A direção da câmera muda, não importa mais a brutalidade eclodida por fatores políticos. Em “A Paixão de Ana”, a fonte de angústia é inesgotável — crise de identidade, ilusão de felicidade e total incomunicabilidade. Não plenamente satisfeito com “Vergonha” (1968), Bergman faz com que “A Paixão de Ana” seja uma espécie de ramificação do filme anterior. A maldade humana como herança cósmica muito lhe interessa, irreprimível, incompreensível e indefectível. Sem motivo aparente o homem precisa destruir, agredir, verter o sangue de suas vítimas. Não há Deus que possa interferir, somente permanece o silêncio dessa figura sobrenatural (ou quimérica) que não se manifesta. Mistério perpétuo. A suspeita do caráter autobiográfico do filme não parece ser um equívoco. O personagem recluso de Max von Sydow pode muito bem ser um reflexo do próprio cineasta, artista que se sentia íntegro no isolamento que a ilha de Fårö lhe proporcionava. Ainda nessa linha de raciocínio, não podemos ignorar a significância da intromissão de Liv Ullmann na solidão do suposto alter-ego de Bergman. Atriz e diretor envolveram-se em um romance, e a ilha de Fårö mostrou-se perfeita para refúgio dos apaixonados.

Na continuidade das imagens o que mais deslumbra são os rostos, olhos azuis hipnotizantes, faces que tomam posse das expressões de um espírito que soçobra. Andreas Winkelman (Max von Sydow) vive em uma ilha, habitante exclusivo de uma casa espaçosa. Seu comportamento sofre a influência de um trauma do passado, Andreas cumpre pena em seu cárcere ao ar livre. A Ana (Liv Ullmann) do título irrompe na solidão de Andreas, mulher que se apóia em muletas por causa da perna danificada em um acidente, lembrança física da tragédia que matou seu marido e filho. A vida atual de Ana baseia-se em mentiras que adornam um passado doloroso, Ana também é prisioneira, confinada em sua psique repleta de fantasias. Após receber Ana em sua casa para um telefonema, Andreas descobre que ela esqueceu sua bolsa, provavelmente resultado da decepção que sofreu ao telefone. Movido pela curiosidade, Andreas abre a bolsa e descobre uma missiva. As palavras datilografadas são do ex-marido de Ana, declaração cheia de sofrimento do homem que não mais suportava o convívio. Andreas entra em contato com as mágoas de Ana antes mesmo de conhecê-la, examina a ferida da desconhecida com o auxílio de Bergman, que desliza cuidadosamente sua câmera pelas tristes palavras de um excerto da carta. Com preventivo comedimento, Andreas aproxima-se do casal que vive nas redondezas, Eva (Bibi Andersson) e Elis Vergerus (Erland Josephson). Na casa dos mesmos, Ana repousa após o trauma do acidente. Elis é o arquiteto arrogante que mantém uma excêntrica coleção de fotos. Conserva corpos em imagens, coleciona momentos pessoais, mas é incapaz de compadecer-se com a amargura da humanidade. Como o próprio ator diz na entrevista inserida no filme, o sofrimento alheio não tira o sono de seu personagem. Em um cômodo especial, Elis armazena com organização a profusão de retratos, corpos estáticos que jazem em seus respectivos lugares. Perturbada por uma crise de identidade, Eva envolve-se rapidamente com Andreas. Escarlate é a cor que ilumina o encontro dos dois, explosão visual que compensa o desejo um tanto represado. Sangue inocente é espalhado pelo solo da ilha, um massacre de animais perpetrado por um desconhecido apavora a todos. Assim Bergman reafirma sua crença na maldade que compõe a essência do ser humano. Andreas e Ana passam a viver como casal.

Desintegração absoluta, a tal violência física e psicológica que Andreas leu na carta proibida instala-se entre eles. Durante uma sequência de pesadelo, Bergman oferece uma espécie de epílogo de “Vergonha”. Nada superficial. A relação entre “Vergonha” e “A Paixão de Ana” não se circunscreve ao visual. “Em ‘A Paixão de Ana’ o sonho começa onde cessa a realidade de ‘Vergonha’”; “’A Paixão de Ana é, se quisermos, uma variante de ‘Vergonha’. Apresenta o que afinal eu quis mostrar nesse filme — a violência que se manifesta de maneira velada”, essas são declarações de Ingmar Bergman que revertem esse claro traço do entrelace, encontrado no sonho de Ana, em sólida evidência de uma vinculação substancial. Por falar em desintegração, foi nessa época que Ingmar Bergman e Liv Ullmann optaram pela separação, o que por si só levou ressentimento para o processo de filmagem. Na ficção, após o definitivo rompimento, o completo desmoronamento ganha sua representação suprema — o personagem desarvorado está cada vez mais perto, um zoom invasivo enche de grânulos a imagem que consequentemente começa a perder a nitidez; quase perdendo a forma Andreas vai ao chão, não mais um homem e sim um acúmulo de escombros. Ouve-se a voz em off e Bergman confunde-se com Andreas: “Desta vez, chamaram-lhe de Andreas Winkelman...”

“Não temos um Deus externo. Temos uma espécie de Deus dentro de nós” — Ingmar Bergman

Quando almas se encontram...



Sabe aquele tipo de história que vai enredando o público aos poucos e quando a gente se dá conta, está totalmente envolvido, chegando às lágrimas de tanta emoção e delicadeza? É o que acontece com esse filme francês Minhas Tardes com Margueritte (La Tête en Friche), dirigido por Jean Becker e estrelado pelo gigantesco Gérard Depardieu, que vive o cinquentão Germain , um homem aparentemente bruto e rude.
No entanto, Germain convive com a intolerância e o que hoje conhecemos como bulling desde pequeno: como era gordinho e alto, ele era ridicularizado constantemente na escola, tanto pelos colegas como pelo professor. E em casa era o mesmo drama, pois a mãe (interpretada por Claire Maurier) nunca o aceitou e as brigas eram constantes. Por não reagir, ele se fecha e até a vida adulta sofre gozação dos amigos e é agredido pela mãe.
Porém, a vida do feirante Germain se transforma quando num belo dia ele resolve comer seu lanche na praça e conhece Margueritte (Gisèle Casadesus), uma velhinha de mais de 90 anos que, para espairecer da casa de idosos onde mora, lê seus livros no banco dessa pracinha. De maneira educada, Margueritte pergunta se ele não quer ouvir a história que está lendo; ele aceita e surpreende a velhinha, com sua memória auditiva. A partir desse dia, religiosamente eles se encontram para a leitura e aos poucos ela o traz para o mundo das palavras. É sua redenção! Germain reluta, mas seu interesse pela literatura é tanto que, ao saber que Margueritte sofre de problemas de visão e pode ficar cega, ele passa a ler as histórias para ela!
A maneira como o diretor conta a história do tosco Germain é que provoca o envolvimento do espectador. O feirante não só vende os legumes e verduras como cultiva tudo em sua pequena propriedade. Sua relação com a namorada é de extrema delicadeza e, a partir de seu contato com Margueritte, percebemos como Germain é sensível, amoroso e fraterno. É ele que cuida da mãe, que continua ranzinza até morrer. É ele que, nos momentos de necessidade, consola e dá guarida aos amigos. O brutamonte na verdade é um homem gentil e solidário.
Esse diamante quem dilapidou foi Margueritte, com a palavra, com a literatura. A palavra trouxe aquele menininho acuado para a realidade, de um mundo obscuro e introspectivo para a luz e o amor. Como no final o diretor optou por colocar Germain em off contando a história, fiquei com uma visão bem particular do filme. Germain é o autor do livro que lê para aquela que passou a ser sua verdadeira mãe, Margueritte. 

(favodomellone)



BELEZA



Numa obra instigante, Roger Scruton nos convida a refletir a respeito da beleza e do lugar que esta ocupa em nossas vidas.
Como deixa bem claro, sua abordagem não é histórica nem psicológica: é filosófica.
Assim, nos conduz por questionamentos como: 
A beleza é subjetiva?
Existem critérios válidos para julgar uma obra de arte?
Há algum fundamento racional para o gosto?
Qual a relação entre tradição, técnica e gosto?
Pode o belo ser imoral?
Frente àqueles que consideram que juízos de beleza são meramente subjetivos, Scruton, com sua verve polêmica, questiona tal relativismo: "por que estudarmos a herança de nossa arte e cultura numa época em que o julgamento de sua beleza não possui nenhum fundamento racional?".
E com sua contundência característica, declara: "Neste livro, [...] defendo que [a beleza] é um valor real e universal ancorado em nossa natureza racional [e que ] o senso do belo desempenha papel indispensável na formação do nosso mundo".
Concorde-se ou não com o autor, o fato é que não se pode passar com indiferença por seus argumentos.
Se a intenção era fazer o leitor refletir a respeito do assunto, certamente os objetivos se cumpriram.



Dos prados às pessoas, de Safo ao canto dos pássaros, a beleza tem atraído e confundido a humanidade.
Platão via a beleza como o objeto do desejo e uma via de acesso ao transcendente; Tomás de Aquino a via como um atributo do Ser e um dom de Deus.
Mas também pode ser perigosa, como a beleza de Carmen; perturbadora, como a beleza do Davi de Michelangelo; e até imoral, como a beleza da música de Richard Strauss quando Salomé beija a boca inerte de João Batista.
Então, o que exatamente queremos dizer com "beleza", e que lugar ela deve ocupar em nossas vidas?
Neste livro vívido, franco e estimulante, Roger Scruton afirma que a beleza é tão importante quanto acreditava Platão, e de maneira nenhuma deve ser rejeitada como um sentimento meramente subjetivo daquele que a contempla.
Pelo contrário, a beleza é fundamental para uma vida bem vivida; sem o interesse na beleza, nosso mundo não seria um lar para a nossa espécie.

*Roger Scruton nasceu na Inglaterra, é escritor, filósofo e jornalista.
Sua especialização concentra-se na área da estética, com atenção especial para a música e arquitetura.