Stalker - Andrei Tarkovsky



"Agora o verão se foi, e poderia não ter vindo.

No sol está quente, mas tem de haver mais…

Tudo aconteceu, tudo caiu em minhas mãos, como uma folha de cinco pontas, 
mas tem de haver mais…
Nada de mau se perdeu, nada de bom foi em vão. 

Uma luz clara ilumina tudo, mas tem de haver mais…

A vida me recolheu à segurança de suas asas. 

Minha sorte nunca falhou, mas tem de haver mais…

Nem uma folha queimada, nem um graveto partido. 

Claro como um vidro é o dia, mas tem de haver mais".



Excelente filme aos amantes do cinema e filosofia.
As imagens em sépia transmitem a ideia de personagens em uma fotografia.
Denso - aproximadamente 2:30 min.
Stalker é um filme de 1979 do cineasta russo Andrei Tarkovsky, vencedor do Festival de cinema de Cannes, de 1980.
Mais uma obra prima deste grande escultor do tempo.
No filme de Tarkovsky, um homem humilde, ex-presidiário, chamado "stalker", guia dois homens, chamados de "professor" e "escritor" (os nomes pessoais são omitidos - metáfora para razão x emoção) até o interior da "Zona", região isolada por forças militares, localizada num pequeno local de nome não revelado. Havia a suspeita da presença de alienígenas, tendo em vista a ocorrência de fenômenos inexplicáveis naquele lugar. A Zona é repleta de armadilhas - apenas os stalkers conseguem vencê-las, guiando pessoas, mediante pagamento. Segundo o stalker, no interior da Zona há um quarto capaz de realizar os desejos mais íntimos de qualquer pessoa que nele conseguisse entrar, após a ultrapassagem de todas as armadilhas.

Este filme é típico do estilo de Tarkovsky, com tomadas lentas e longas, intensamente elaboradas, intercaladas com diálogos filosóficos e até mesmo poesias. Segundo declarou o diretor russo, o filme é principalmente sobre a fé (e a busca do paraíso interior), sendo secundário o elemento ficção científica, a exemplo do que havia declarado sobre Solaris, filme de 1972.




Tarkovsky faz da Zona um local com uma atmosfera opressiva e perigosa. Trata-se de uma área natural gigante, mas que possui alguns objetos que a tornam assustadora, como tanques enferrujados, seringas, símbolos religiosos na água e assim por diante. O diretor russo cria imagens de beleza extrema. É possível apertar o pause em qualquer cena que você terá uma verdadeira obra de arte. As longas tomadas e os movimentos de câmera peculiares de Tarkovsky nos passam a ideia de que estamos em um sonho. Somos hipnotizados por aquele mundo. 
Antes de tentar compreender o filme, devemos senti-lo, pois ele é pura poesia visual.


Para quem assistiu ao filme, ficam várias indagações - algumas filosóficas. O que é A Zona? O resultado de um meteorito? Algo feito por seres alienígenas? E o que leva as pessoas a se arriscarem lá dentro? Autoconhecimento? Desejo de aventura? Ou a simples ambição de ter seus desejos realizados? Tudo isso não passa a uma metáfora da busca do homem pelo Sagrado - um caminho repleto de medos, perigos e punições.

As conversas dos personagens parecem sem propósito, mas na verdade estão cheias de significados. Um deles se pergunta sobre a arte, sobre a música, sobre o altruísmo e sobre a fé. Enfim, uma reflexão sobre o ser humano e sua relação com o mundo. Afinal, o que estamos fazendo aqui? Podem ser perguntas sem respostas, mas deve-se aplaudir um filme que faz esses questionamentos e nos deixa pensando sobre o assunto.


De qualquer forma, mais do que interpretar e entender todo o simbolismo aqui presente, o que mais impressiona em Stalker é a capacidade de Tarkovsky de criar imagens poderosas. É um filme relativamente lento, mas que não cansa. Para completar, temos o final em que um grande segredo é revelado (o do ser contemplativo) e então começa a trilha com Ludwig van Beethoven.




AS INFLUÊNCIAS DE KIERKEGAARD
(José Vieira Mendes)
Mais do que um grande realizador, Tarkovsky provou ser também um grande pensador da sétima arte. Baseando-se nos seus conhecimento generalistas de todas as artes, em Esculpir o Tempo (edição brasileira da Martins Fontes, 2002), o seu livro onde teoriza algumas das suas concepções, traz-nos novos pontos de vista sobre o cinema, como a de que este não seria apenas formado por uma amálgama das outras artes (literatura, música, teatro, pintura, etc). Tal combinação, segundo ele, resultaria apenas numa forma híbrida, vazia e pretensiosa da imagem. Pelo contrário, defende o cinema como forma de arte absolutamente autónoma, uma vez que seu princípio estético é único e só passou a existir com o advento do cinematógrafo: o registro da impressão do tempo. Daí a afirmar que, da mesma maneira como um escultor toma um bloco de mármore e nele trabalha para dar forma à sua visão artística, o cineasta toma um bloco de tempo e parte dele para desenvolver sua obra.

Tanto a concepção estética como a atmosfera emocional dos filmes de Tarkovsky sugerem a crença do cineasta numa afirmação radical do indivíduo, curiosamente, muito semelhante à encontrada na filosofia de Kierkegaard. Para o filósofo, a individualidade define nossa existência e não o individualismo. No entanto, essa individualidade não deve ser vista apenas como o conjunto de características que nos distingue uns dos outros, mas, sobretudo, como a angústia do aqui e agora, o desespero provocado pela solidão do homem diante do infinito. Basta-nos para confirmar esta ideia recordar de alguns dos mais marcantes personagens de Tarkovsky, como Kris Kelvin (Solaris), Domenico (Nostalgia) e Alexander (O Sacrifício), para repararmos que neles vamos encontrar exactamente essa busca da individualidade, no limiar da compreensão da nossa natureza e limitações humanas. De fato, no momento em que o homem aceita a sua natureza finita e percebe que esta nada mais é do que uma fase da sua trajetória para se tornar parte de algo muito maior e mais complexo, descobre assim a finalidade e a razão da sua existência. Nos planos longos, densos e de intensa reflexão filosófica, tão característicos do cineasta, arriscamo-nos a conceber também um Deus que está muito mais próximo do que poderíamos imaginar. Mas acima de tudo, Andrei Tarkovsky acreditava que a legitimidade de um autor consiste em permitir que o público possa refletir e ir muito mais além do que é dito explicitamente nos seus filmes.

Livro lançado em 2008

Soren Kierkegaard (1813 - 1855) foi um teólogo e um filósofo dinamarquês do século XIX, que é conhecido por ser o 'pai do existencialismo', embora algumas novas pesquisas mostrem que isso pode ser uma conexão mais difícil do que fora, previamente, pensado. Filosoficamente, ele fez a ponte entre a filosofia hegeliana e aquilo que se tornaria no existencialismo. Kierkegaard rejeitou a filosofia hegeliana do seu tempo e aquilo que ele viu como o formalismo vácuo da igreja luterana dinamarquesa. Muitas das suas obras lidam com problemas religiosos tais como a natureza da fé, a instituição da fé cristã, e ética cristã e teologia. Por causa disto, a obra de Kierkegaard é, algumas vezes, caracterizada como existencialismo cristão, em oposição ao existencialismo de Jean-Paul Sartre ou ao proto-existencialismo de Friedrich Nietzsche, ambos derivados de uma forte base ateística. A obra de Kierkegaard é de difícil interpretação, uma vez que ele escreveu a maioria das suas obras sob vários pseudônimos, e muitas vezes esses pseudo-autores comentam os trabalhos de pseudo-autores anteriores. Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo - herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de estado. A perspectiva trabalhada neste livro é de cunho religioso e, na dialética existencial de Sören Kierkegaard apresenta o homem ético representado pela figura bíblica de Abraão que à medida que se posiciona a acreditar em Deus, dá o salto da fé, onde vivencia o crer sem ver, e o viver pela experiência com o próprio Deus.

Síntese da leitura da obra Temor e Tremor, de Soren Kierkegaard
Abraão tinha fé na palavra divina de que todas as nações seriam abençoadas em sua posteridade, e continuou a crer nela ainda quando, após ser pai na velhice, lhe foi exigido o sacrifício de seu único filho, Isaac; ora, tal sacrifício, que tirava todo sentido racional à promessa, significou, para Abraão, a fé no absurdo, a certeza de que Deus o estava provando e a disposição de sacrificar, se necessário, Isaac (com a certeza de que este lhe seria restituído); realiza-se, assim, o movimento que parte da resignação infinita (pela qual renuncia a Isaac), em que se adquire a consciência do seu próprio valor eterno, e chega-se, pelo absurdo, à fé, em que se readquire o finito (a retomada de Isaac); tal movimento implica a angústia e o paradoxo pois, se é preciso coragem puramente humana para renunciar a toda a temporalidade a fim de obter a eternidade, é preciso a coragem da fé para, em razão do absurdo, encontrar a alegria na temporalidade finita e transformar, assim, um crime moral em algo santo e agradável.

Aplicando-se a todos e em cada momento, a moral está no geral, constituindo-se no telos do indivíduo, que deve exprimir-se constantemente abandonando seu caráter de indivíduo para atingir o geral, de modo que a moral não pode, de forma racional, ser teleologicamente suspensa; contudo, a fé é o paradoxo segundo o qual o indivíduo, após ter ficado no geral, está isolado, agora, acima do geral, numa relação absoluta com o absoluto (posição que, por fugir ao geral, é inacessível ao pensamento); a virtude de Abraão não é, pois, moral, mas pessoal, e dela não pode falar, tornar compreensível, sendo ela um milagre que não depende somente das próprias forças do homem, embora dela ninguém esteja excluído (pois a unidade da existência humana encontra-se na paixão, e a fé é uma paixão). Ademais, o paradoxo da fé consiste em que, estando o indivíduo acima do geral (que é, no sentido abstrato, o divino e o dever), determina sua relação com o geral tomando como referência o absoluto, e não vice-versa; logo, existe um dever absoluto com relação a Deus, dever pelo qual o indivíduo refere-se como tal absolutamente ao absoluto, achando-se a moral rebaixada ao relativo; o dever absoluto pode levar Abraão à realização do que a moral proíbe, mas mantém-se a condição de que ame verdadeiramente Isaac, caindo, assim, na angústia e no paradoxo, incomunicável em termos do geral.

Finalmente, ao contrário da estética, (que autoriza ou exige o silêncio, quando por ele o indivíduo pode salvar alguém) e da ética, (que exige a manifestação pelo geral), a fé impõe a angústia silenciosa, de modo que Abraão não pode explicar que se trata de uma prova; Abraão jamais foi compreendido mas, de qualquer maneira, está perdido caso não haja o paradoxo que torne o indivíduo como tal numa relação com o Absoluto. Portanto, a fé é a mais elevada paixão do homem e nenhuma geração, inclusive a nossa, pode ir além dela. (Em Kierkegaard, o “cavaleiro da fé, como Abraão, opõe-se ao “herói trágico”, representado por Agamenon (em Ifigênia em Áulide) que, num movimento de resignação infinita, sacrifica a filha por uma exigência moral e que apoia-se no geral, pelo qual pode, então, comunicar-se).

Em exposição - "A Cor dos Meus Óleos"

















Série Corujas





















*Tinta a óleo sobre tela e pedrarias.
  Produção recente.





Primeira degustação mensal - Vinhos Argentinos


No retorno de Buenos Aires, em março, trouxemos onze garrafas de vinhos tinto. Em sua maioria, malbec.
A ideia é degustar um por mês - sempre nos últimos domingos. Devido a ser Páscoa, o evento foi antecipado. 

O Perdriel foi o primeiro escolhido porque tinha a data de elaboração mais antiga - 2007.
No menu, como acompanhamento, filé ao molho madeira e arroz jasmim - depois da semana atribulada não foi possível pensar em algo mais elaborado.

Interessante observação:
O vinho e o carvalho
*Madeira influencia textura e sabor da bebida

Por séculos o barril de carvalho tem sido usado para fermentação e amadurecimento do vinho. Como essa madeira é porosa por natureza, uma pequena parte do líquido evapora enquanto o vinho fica armazenado no barril. A evaporação promove naturalmente uma muito bem-vinda concentração dos compostos aromáticos do vinho.

O carvalho dá mais complexidade ao vinho e influencia sua textura e sabor. Alguns dos aromas típicos encontrados em vinhos amadurecidos em barris de carvalho são os de temperos e especiarias, como cravo, canela, noz-moscada e baunilha, e também fumaça (ou tostado), caramelo, manteiga, coco e folhas de chá.

Os dois tipos mais comuns de barris usados na vinificação são o de carvalho francês e o de carvalho americano. O primeiro é mais caro e é considerado mais nobre pela indústria vinícola.

Por ter os poros menores do que o americano, ele tem menos influência no perfil aromático, porém passa mais taninos ao vinho. O carvalho americano é mais barato, tem menos taninos e maior influência no perfil aromático, muitas vezes dando ao vinho um toque adocicado.
www.aredacao.com.br/colunas

Entre os vinhos que fizeram um bom uso do barril de carvalho está o Perdriel:



Finca Perdriel Coléccion Malbec amadureceu por doze meses em barricas de carvalho francês antes de chegar ao mercado. É um vinho harmonioso e bem acabado, produzido pela Bodega Norton, em Mendoza, na Argentina. Tem aromas de ameixa e cereja, notas de especiarias e um toque picante.

Hoje degustamos um Cabernet Sauvignon:
"Este vino lleva el nombre de la primera finca de Bodega Norton, nacida hace más de cien años en Mendoza.
Allí el suelo se caracteriza por tener la capa superior más delgada que el promedio de la zona, lo que disminuye la capacidad de retención de agua. Debido a ello, las uvas de Finca Perdriel resultan altamente concentradas, generando vinos de mayour cuerpo, intensidad de color y sabor, con alta predisposición para su guarda.
La crianza de este varietal durante diez meses en barrica de roble francês ofrece un vino equilibrado y elegante".

Argentina - Mendoza - Lujan de Cuyo | Perdriel
14,5% V
Dica do Sommelier:
Indicado para pratos potentes, carnes de caça de pelo, assados, ossobuco e queijos de massa dura.


Acompanhamento

Sobre Lujan de Cuyo
Toda a região é governada pelos Andes, desde o clima, com o vento Zonda, os granizos e as tormentas de verão, passando pela luminosidade e a irrigação feita através de canais de superfície do tempo dos Incas e pelos rios subterrâneos. Para chegar em Cuyo, necessariamente, se passa por pequenos desertos.
Quando se imagina que nada vai aparecer começam a surgir os vinhedos, literalmente, cravados na terra árida.Como este da foto.


E tem que ser assim, se houver muita matéria orgânica no solo a videira não desenvolve seu potencial.
Interessante destacar que vinho bom é de videira que sofre, que vai buscar seu alimento bem abaixo no solo. E para tanto os famosos canais arquitetados pelos Incas continuam a exercer sua função.
Nesta área existe a maior concentração de produtores de vinhos finos na Argentina.

Nota ao vinho: 90 pontos.

Pra finalizar, um pouco da música argentina, com Milos Karadaglic.



Filme - Prospero's Books


"Somos da mesma substância do qual são feitos os sonhos;
e nossa breve vida está rodeada por um dormir"



1991.
Filme denso. Muita sobreposição de imagens e informações.
Aproximadamente duas horas de duração.
Fantasia, teatro, dança.
Interessante que bem no início há uma referência ao filme "Drowning by Numbers" (1988), quando uma mulher também pula corda enquanto conta. No finzinho também, alusão ao Livro do Jogo. Detalhes que Greenaway pensou em relacionar.

Resenha da Revista de Cinema Contracampo
Por Paulo Ricardo de Almeida

"Por que realizar uma obra, se é tão belo apenas sonhá-la?", questiona Pier Paolo Pasolini em Decameron (Decameron, 1972). Peter Greenaway, em A Última Tempestade, transforma os delirantes sonhos vingativos de Prospero (John Gielgud), Duque de Milão exilado em ilha distante com sua filha e seus livros, em fatos reais, para refletir acerca da criação artística, ao mesmo tempo angelical e diabólica, pois, embora capaz de gerar a beleza redentora e de absorver todo o conhecimento do mundo, traz consigo, inseparável, o poder do artista, tanto sobre a obra e os personagens, quanto sobre o público para quem se dirige.

Peter Greenaway adapta "A Tempestade", de William Shakespeare: a biblioteca com que Prospero é exilado - pelo próprio irmão, que lhe toma o ducado para aliar-se ao Reino de Nápoles - permite ao cineasta inglês instaurar a intensa intertextualidade que caracteriza seus filmes, visualmente expressa através do aproveitamento da superfície do quadro - sobreposição e divisões de imagens dentro da tela, uso gráfico dos textos, quebrando a linearidade temporal da narrativa ao estilhaçar o espaço para aproximá-lo da tela do computador, hipertextual por excelência, com links que remetem sempre a outros links. Dessa forma, enquanto Prospero, cercado por figuras mitológicas (sobretudo Ariel e Calibã, o Anjo e o Demônio, respectivamente), escreve a trama de vingança, Greenaway aproveita para relacionar a obra em gestação com todos os livros que ajudaram a construir o imaginário do artista, que agora se apropria e se utiliza da rede de signos conhecida a priori a fim de criar o novo, ato em si mágico, misterioso e inexplicável, exprimindo os sonhos fantásticos que lhe atravessam a alma e o corpo.

É a arte enquanto bruxaria, que materializa as páginas escritas por Prospero, que torna reais os delírios do protagonista, que faz da vingança caminho, através do amor entre Miranda (Isabelle Pasco) e Ferdinand (Mark Rylance), para o perdão e, em conseqüência, para a redenção. Movimento, contudo, inusitado no cinema de Greenaway que, em geral, prefere o humor negro a fim de revelar o cinismo das relações pessoais e dos códigos sociais que as pautam, seja na mãe e nas filhas que matam os maridos em Afogando em Números; seja no estupro coletivo como método de punição à falsa gravidez em O Bebê Santo de Macon (The Baby of Macon, 1993); seja no exótico jantar servido ao final de O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante (The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover, 1989). Trata-se, por certo, de mostrar o poder que perpassa e que desequilibra o contato entre os homens, visto que os desiguala: na disputa pelo controle da exposição entre Stourley Kracklite (Brian Dennehy) e Caspasian Speckler (Lambert Wilson) em A Barriga do Arquiteto; nos enquadramentos precisos e arbitrários de Mr. Neville (Anthony Higgins) para seus desenhos, aos quais dispensa a mesma violência com a qual chantageia sexualmente aquela que o emprega em O Contrato do Amor (The Draughtman’s Contract); na obsessão de Greenaway pelos números, que servem para ordenar, para sistematizar e, por fim, para anular qualquer afeto ou sentimento dos personagens neles imersos.

Conforme evidenciam tanto o pré-cineasta encarnado por Mr. Neville, quanto Nagiko (Vivian Wu), a qual domina os corpos dos amantes ao usá-los como páginas em O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1996), a arte se constrói enquanto estratégia de controle. Prospero, em A Última Tempestade, detém o poder sobre os personagens que cria, pois, literalmente (é o próprio John Gielgud quem fala por eles), dá-lhes voz. Para perpetrar sua vingança, escraviza Ariel e Calibã. Frente à rebelião do segundo - a qual marca a independência progressiva das demais figuras em cena do jugo do artista - resta a Prospero apenas a obediência do primeiro, a quem promete libertar caso o objetivo a que se propõe seja alcançado.

Ariel, mas também Prospero, pois enquanto Ariel executa as ações no mundo imaginado por Prospero, este igualmente representa a ponte entre o universo cinematográfico visto na tela e o público para o qual ele se destina. De maneira que a liberdade de Ariel liga-se a de Prospero, o qual a adquire quando reconhece que não há onipotência na criação, quando, paradoxalmente, abandona o papel de criador para abraçar o de personagem: os sonhos do artista - de Prospero, de Greenaway - como veículos para incitar os sonhos dos espectadores, verdadeiros senhores a quem o cinema se subordina.

"O sonho de um homem ridículo"




Curta baseado no Conto de Dostoiévsky ( publicado em 1877)
Direção: Aleksandr Petrov (1992)
20 minutos

O personagem sabe-se ridículo desde a infância e já não tem mais nenhum interesse em continuar a viver. Num dia inútil como todos os outros, em que mais uma vez esperava ter encontrado o momento de se matar, é abordado por uma menina que clamava por ajuda. Ele não só recusa o apoio à criança, como a espanta aos berros. Ao voltar para casa, não consegue dar fim à sua existência. Adormece e sonha. Ele narra como conheceu a verdade em toda a sua glória e mostra como tudo aquilo deve ter sido real, pois as coisas terríveis que sucederam não poderiam ter sido engendradas num sonho.

SOU UM HOMEM ridículo. Agora já quase me têm por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse sendo um homem ridículo. Mas eu já não me aborreço por causa disso, agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda que se riam de mim… sim, senhor, agora, não sei por quê, mas sinto por todos os meus próximos uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhá-los no vosso riso… não precisamente nesse riso à minha custa, mas sim pelo carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena vê-los. É pena que não saibam a verdade. Oh, meu Deus! quanto custa isso de ser um só a saber a verdade! Mas isto não compreendem eles. 
Não, nunca compreenderiam isto.


O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante





Dando continuidade a Greenaway, eis mais uma peça rara.
Filme de 1989.

Texto de Rodrigo Carneiro
(Cine Masmorra, 03/04/2011)

Carimbar antes do nome do inglês Peter Greenaway o rótulo de cineasta é uma atitude simplista e insuficiente. Greenaway é muito mais do que isso. É um artista plástico de vanguarda, que acumula as funções de fotógrafo, pintor, instalador e filósofo. Um filme, para ele, é apenas um dos vértices de trabalhos artísticos bem mais ambiciosos do que simplesmente contar uma história. Qualquer pessoa que deseje se aventurar na obra de Peter Greenaway precisa ter isso em mente. É imprescindível fazer isso antes de conferir “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” (The Cook, the Thief, his Wife and her Lover, Inglaterra/França/Holanda).


O filme, um favorito entre os acadêmicos que estudam cinema no âmbito da universidade, é um deslumbre visual incomparável. Mas quem estiver esperando um filme de estrutura mais convencional, com começo, meio e fim claramente definidos, corre sério risco de achar o filme chatíssimo, incompreensível ou até mesmo vazio de significados. Não é bem assim, mas “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” é o tipo de longa-metragem que exige uma reeducação dos sentidos, e uma reflexão sobre o ato de fazer e assistir a cinema, para ser apreciado.


O enredo, que envolve os quatro personagens citados no título, é frugal. O indesejável e barulhento gângster Albert (Michael Gambon), que janta todas as noites no restaurante Le Hollandais, começa a ser traído pela mulher Georgina (Helen Mirren) com um freqüentador do lugar, o bibliotecário Michael (Alan Howard), com a cumplicidade do chef Richard (Richard Bohringer). Albert, cuja figura lembra estranhamente o cantor de ópera Luciano Pavarotti, é o ser humano mais intragável que o cinema já produziu: grosseiro, mal-educado, violento, boçal, chato e machista. Por isso, a reação dele não será nada agradável, caso descubra o affair da mulher.


A película propõe uma associação pouco usual entre comida e sexo, quando Greenaway intercala cenas de erotismo quase explícito entre os amantes com o ato de preparação de um prato fino. Um beijo é seguido por um tomate sendo cortado, uma cruzada de pernas dá seqüência a um pepino sendo fatiado. Greenaway associa as duas pulsões básicas da teoria freudiana – sexo e morte – ao ato de comer. Além disso, apimenta a receita com fartas doses de escatologia, escancarada logo no prólogo do filme, quando o gângster Albert humilha um homem que lhe deve dinheiro dando-lhe uma surra, sujando-o com cocô de cachorro e urinando em cima dele. E se você acha que isso é demais para os olhos de qualquer espectador, espere até conferir o banquete servido a Albert no final do filme.


Toda essa escatologia é contraditoriamente apresentado à audiência em um filme belíssimo. Greenaway construiu quatro locações e iluminou cada uma com uma tonalidade diferente: a saída do restaurante (azul), a cozinha (verde), o banheiro (branco) e o salão de jantar (vermelho). Essa última conta com um enorme painel do século XVI, de autoria de Frans Hals, retratando um banquete; a cenografia deste ambiente é inspirada no quadro e reproduzida de maneira tão fiel e inteligente que, por vezes, os olhos nos enganam, e as figuras do quadro parecem estar jantando dentro da sala (ou vice-versa).


Além disso, os figurinos arrojados do estilista Jean-Paul Gaultier mudam de cor conforme os personagens se movimentam de cômodo a cômodo. Esses movimentos são flagrados por Greenaway de maneira personalíssima. A câmera se move lateralmente, em longas tomadas, lentamente e sem cortes. Na maior parte das cenas, os personagens são focalizados de longe, em planos de composições plasticamente belas. Greenaway filma como se estivesse pintando. Seu filme tem a textura, a explosão de cores e a vibração de um grande afresco renascentista, o que lhe confere um visual único e espetacular.


Além de tudo isso, há a bela música de Michael Nyman, composta de forma quase minimalista e inserida como pinceladas de tempero na mistura cinematográfica. O resultado final tem alguma semelhança com "Amor a Flor da Pele", de Wong Kar-Wai, só que substituindo a nostalgia delicada do diretor asiático por uma excitação hipnótica e cheia de energia.
Talvez fosse possível descrever “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” como uma improvável mistura entre o refinamento visual de Jean-Pierre Jeunet (pense em "Delicatessen" ou "Ladrão de Sonhos") com a virulência escatológica de Pier Paolo Pasolini (de"Saló").

Drowning by Numbers - Afogando em números




Nesta noite solitária e úmida a companhia foi de  Peter Greenaway.
Hoje chove lá fora e as pessoas morrem afogadas na arte.
Um duelo entre realidade e sonho.



Ano de 1988.

Aqui não indicamos filmes. Assim como não se sugere restaurantes, vinhos, modos de felicidades - ou paixões.
Este espaço aberto existe assim, pra poder clicar e encontrar - um momento que foi. Um resgate.
Único e pessoal.
Eis mais um filme fantástico. No início, parece que estamos em uma pintura a óleo de tempos remotos. Muitas frutas, cestas, insetos, cores, corpos nus...
Não é atoa que Peter Greenaway quando era criança, desejava tornar-se pintor. O interesse pela pintura foi muito importante para definir toda sua obra artística. Seus filmes são compostos visualmente usando-se parâmetros estéticos da pintura. O jovem Peter estudou cinema, com particular interesse por Bergman, pela Nouvelle Vague e cineastas como Godard e especialmente, Resnais.

Nossa, que cenário!
O foco está em JOGOS.
Números e mais números sugerem com maestria o título.

*Três mulheres com o mesmo nome, Cissie, cometem três assassinatos, cada uma afogando o próprio parceiro por pura insatisfação. A garantia para os crimes não virem à tona é dada por um amigo apaixonado por elas: ele declara que os afogamentos foram acidentes. Esse amigo e seu filho são obcecados por jogos de todos os tipos, que são jogados durante o filme.

Destaque para os gordos.
A história destaca o corpo.
Hilário - "Deixe-o dormir, pois enquanto dorme, não come!"

Os números...
Você nunca desejou saber quantas folhas há numa árvore?
E o quanto de cabelo existe em uma pessoa "dito" normal?

Realmente se trata de uma obra de arte.
Fantasia.
Sonho.
Alucinação.

Sui Generis - meu primeiro número encontrado (ao acaso em um papel) após o término do filme foi - 19:49 - será a hora do despertar?

Muito poético.
A ideia é assistir mais filmes de Greenaway. Captar de forma mais ampla sua técnica e beleza.