Filme - The Wicker Man (O homem de palha)


Direção de Robin Hardy, 1973.
Muito bom.
Erótico. Enigmático.
O filme começa com uma grande escrita no muro: JESUS SALVA.
Um policial recebe uma carta anônima. Nela, a notícia de que uma jovem menina está desaparecida. É no interior e ele parte só para a investigação. No vilarejo, vê atos insanos. Sexo. Cantorias. Ritmos e rituais. Uma comunidade pagã que acredita em sacrifícios.


O cristianismo não é respeitado. Após várias abordagens, nosso detetive percebe que algo está errado. Ninguém colabora com informações. Por fim, descobre que tudo foi um jogo. O principal objetivo era a sua vida em oferenda aos deuses. A indiferença nos rostos é marcante e ninguém escuta suas réplicas a Deus. Fantástico. Teatral. Poético.


O Sargento Howie, como o cristão que é, entra em conflito com suas crenças ao longo da trama com o que encontra na ilha. Liderados pelo Lord Summerisle (Christoper Lee), praticam uma série de rituais pagãos e fundamentam sua pequena sociedade em cima dessas crenças. Algumas cenas do filme são clássicas e muito conhecidas, como a da professora Miss Rose (Daiane Cilento) que explica às crianças sobre o significado fálico do Mastro de Maio, ou o momento em que Summerisle fala que "acha que poderia voltar a viver com os animais" enquanto Howie, em orações, tenta manter-se controlado enquanto ouve os gemidos da mulher que, sozinha, está no quarto ao lado provocando-o. Outro dos momentos marcantes do filme é quando Summerisle, na posição de sumo-sacerdote da sociedade, questiona os valores conservadores de Howie. "Somos pessoas profundamente religiosas", confessa o sacerdote. Howie questiona sobre as igrejas em ruínas, sobre a falta de padres ou pastores e crianças dançando nuas. "Eles amam sua lição de divindade" responde Summerisle. 
Um belo enredo.



Robin Hardy, ficou tenso com a refilmagem de seu clássico de terror por Neil LaBute. Tanto que o cineasta inglês contratou um time de advogados para assegurar legalmente que seu nome não será relacionado à nova versão, batizada de O Sacrifício (2006). Ele teme que os fãs do seu clássico relacionem seu nome à refilmagem.

Os fãs do filme original criticam o remake porque o local da história foi mudado da Escócia para os EUA. Além disso, o sexo do chefe da vila onde se passa a história também é diferente.


Após presenciar um trágico acidente diante do qual nada pôde fazer, o policial Edward Malus (Nicolas Cage) fica abalado psicologicamente. Recebe então uma carta de sua ex-noiva, que o abandonara anos atrás sem explicações. Ela pede ajuda: sua filhinha, Rowan (Erika-Shaye Gair), desapareceu em Summerisle, uma ilha isolada na costa do estado americano do Maine. Lá ele se vê cercado por uma série de estranhos eventos, que vão se tornando cada vez mais grotescos à medida que avançam os preparativos para a festa anual da colheita promovida pela comunidade. Até que Edward é surpreendido por um encontro com o Homem de Palha.

O HOMEM E A CONCHA

Se houvesse uma poesia das maravilhas e das emoções do intelecto (com a qual sonhei durante toda a minha vida), não haveria para ela tema mais deliciosamente excitante a ser escolhido do que a pintura de um espírito solicitado por algumas dessas formações naturais extraordinárias, notadas aqui e ali (ou melhor, que se fazem notar), entre tantas coisas de aspecto indiferente e acidental que nos cercam.
Como um som puro ou um sistema melódico de sons puros no meio de ruídos, assim um cristal, uma flor, uma concha se destacam da desordem comum do conjunto das coisas sensíveis. Significam para nós objetos privilegiados, mais inteligíveis ao olhar, embora mais misteriosos à reflexão, que todos os outros que vemos indistintamente. Propõem-nos as idéias estranhamente unidas de ordem e de fantasia, de invenção e de necessidade, de lei e de exceção; e encontramos, ao mesmo tempo, em sua aparência, o aspecto de uma intenção e de uma ação que as teriam moldado quase como os homens sabem fazer e, entretanto, a evidência de procedimentos que nos são proibidos e impenetráveis. Podemos imitar essas formas singulares; e, nossas mãos, talhar um prisma; montar uma falsa flor, compor ou modelar uma concha; sabemos até exprimir por meio de uma fórmula suas características de simetria, ou representá-las com muita semelhança por meio de uma construção geométrica. Até aí, podemos emprestar à natureza: dar-lhe desenhos, uma matemática, um gosto, uma imaginação que não são infinitamente diferentes dos nossos; mais eis que, tendo-lhe concedido tudo o que ela precisa de humano para se fazer compreender pelos homens, ela nos manifesta, por outro lado, tudo o que é preciso de inumano para desconcertar-nos... Admitimos a construção desses objetos e é através disso que eles nos interessam e conservam-nos; não concebemos sua formação, e é através disso que eles nos intrigam. Embora feitos ou formados por nós mesmos por meio de um crescimento sensível, nada sabemos criar por esse meio.


Esta concha que mantenho e giro entre meus dedos, e que me oferece um desenvolvimento combinado dos temas simples da hélice e da espiral, leva-me, por outro lado, a uma admiração e uma atenção que produzem aquilo que podem: observações e exatidões totalmente exteriores, questões ingênuas, comparações "poéticas", imprudentes teorias do estado nascente... E sinto que meu espírito pressente vagamente todo o tesouro infundido das respostas que se esboçam em mim diante de algo que me detém e que me interroga...


Tento primeiro descrever esse algo. 
[...]
Mas essa simplicidade existe apenas em princípio.
Se eu visitar uma exposição inteira de conchas, observarei uma maravilhosa variedade.
[...]
Tendo feito de alguma concha essa forma de descrição totalmente externa e mais generalizada possível, um espírito que tivesse a oportunidade e que se deixasse produzir por si, ouvindo o que lhe solicitam suas impressões imediatas, poderia fazer uma pergunta das mais ingênuas, daquelas que nascem em nós antes de lembrarmo-nos de que não somos mais crianças e de que já sabemos das coisas. É preciso, primeiro, desculpar-se e lembrar-se de que o saber consiste, em grande parte, em "acreditar saber" e em acreditar que os outros sabem.
A todo instante, recusamo-nos a escutar o ingênuo que existe em nós. Reprimimos a criança que habita em nós e que sempre quer ver pela primeira vez. Se ela interroga, desembaraçamo-nos de sua curiosidade, tratando-a de pueril por não ter limites, com o pretexto de que estivemos na escola, onde aprendemos que existe uma ciência para todas as coisas, que poderíamos consultá-la; mas que seria perda de tempo pensar de acordo consigo mesmo e sozinho neste objeto que nos detém de repente, solicitando uma resposta. Sabemos, bem demais talvez, que existe um imenso capital de fatos e de teorias, e que encontramos, ao folhear as enciclopédias, certos nomes e palavras que representam essa riqueza virtual; e estamos seguros demais de que encontraremos alguém, em algum lugar, em condições de esclarecer-nos, se não de fascinar-nos, a respeito de qualquer assunto. É por isso que retiramos prontamente nossa atenção da maioria das coisas que começam a excitá-la, sonhando com os sábios homens que teriam aprofundado ou dissipado o acidente que acaba de despertar nossa inteligência. Mas essa prudência às vezes é preguiça; e, aliás, nada prova que tudo seja realmente examinado sob todos os aspectos.
Faço, então, uma pergunta ingênua. Imagino facilmente que a única coisa que sei sobre conchas é aquilo que vejo quando apanho alguma; e nada sobre sua origem, sobre sua função, sobre suas relações com o que não observo no próprio momento. Apoio-me na autoridade daquela que, um dia, rejeitou todas as idéias anteriormente admitidas.
Olho pela primeira vez essa coisa encontrada; assinalo nela o que disse a respeito de sua forma, encontro dificuldades. É quando me interrogo: Quem fez isso então?
Quem fez isso então?, diz-me o instante ingênuo.
Meu primeiro movimento de espírito foi sonhar com o Fazer.
A ideia de Fazer é a primeira e a mais humana. "Explicar" nunca é mais que descrever uma maneira de Fazer: é apenas refazer através do pensamento. O Porquê e Como, que são apenas expressões do que é exigido por essa ideia, inserem-se a todo instante, ordenando que os satisfaçamos a qualquer preço. A metafísica e a ciência somente desenvolvem sem limites essa existência. Ela pode até levar-nos a supor que ignoramos o que sabemos, quando o que sabemos não se reduz claramente a alguma habilidade. É isso recuperar os sentidos na sua fonte.
Vou então introduzir aqui o artifício de uma dúvida; e, considerando esta concha, em cuja face creio discernir uma certa "construção" como se fosse a obra de alguma mão que não está agindo "ao acaso", eu me pergunto:
Quem a fez?


Mas minha questão logo se transforma. Ela se compromete um pouco mais adiante no caminho de minha ingenuidade, e eis que começo a me preocupar em procurar em que reconhecemos que um dado objeto é ou não feito por um homem.
[...]
O problema afinal não é mais inútil ou mais ingênuo que discutir o que fez uma bela obra de música ou poesia; e se ela nos nasceu da Musa, ou veio-nos do Acaso, ou se foi o fruto de um longo trabalho? Dizer que alguém a compôs, quer se chame Mozart ou Virgílio, não é dizer muita coisa; isso não vive no espírito, pois o que cria em nós absolutamente não tem nome; trata-se apenas de eliminar de nossa profissão todos os homens menos um, em cujo mistério íntimo encerra-se o enigma intacto...
[... até podemos esculpir uma concha, mas é isso o importante?]


Sinto que , se eu pude começar a fazer esta forma, é porque eu poderia me propor a criar outras totalmente diferentes. Esta é uma condição absoluta: se podemos fazer somente uma coisa e de uma única maneira, ela é feita como que dela mesma; e, portanto, essa ação não é verdadeiramente humana (já que o pensamento não é absolutamente necessário), e nós não a compreendemos.
O que fazemos assim é que nos faz a nós mesmos, mais do que fazemos. O que somos senão um equilíbrio instantâneo de uma quantidade de ações escondidas e que não são especificamente humanas? Nossa vida é tecida com esses atos pontuais, onde a escolha não intervém, que se fazem incompreensivelmente deles mesmos. O homem anda; respira; lembra-se - mas em tudo isso ele não se distingue dos animais. Ele nem sabe como morre, nem como se lembra; e não tem a menor necessidade de sabê-lo para fazer isso, nem de começar pelo saber antes de fazer. Mas, construindo uma casa ou um navio, fabricando um utensílio ou uma arma, é preciso que um propósito aja primeiro nele próprio e faça dele mesmo um instrumento especializado; é preciso que uma ideia coordene o que ele quer, o que pode, o que sabe, o que vê, o que toca e ataca, organizando-o expressamente para uma ação particular e exclusiva a partir de um estado em que ele estava disponível e livre ainda de qualquer intenção. Sendo solicitado a agir, essa liberdade diminui, renuncia; e o homem se submete por um tempo a uma servidão, por cujo preço ele pode imprimir alguma "realidade", a marca do desejo figurado que está em seu espírito.
Em resumo, qualquer produção positivamente humana e reservada ao homem opera-se através de gestos sucessivos bem separados, limitados, enumeráveis. Mas certos animais, construtores de colmeias ou de ninhos, parecem-se bastante conosco até aqui. A obra própria do homem se distingue quando esses atos diferentes e independentes exigem sua presença pensante expressamente para produzir e ordenar ao objeto sua diversidade. O homem alimenta em si a duração do modelo e do querer. Sabemos muito bem que essa presença é precária e cara; que essa duração diminui rapidamente; que nossa atenção se decompõe bem depressa e que o que excita, reúne, recupera e reanima os esforços de nossas funções distintas tem uma natureza totalmente diversa: é por isso que somos propósitos refletidos e nossas construções ou fabricações desejadas parecem muito estranhas à nossa atividade orgânica profunda.


Posso então fazer uma concha bem parecida com essa, da maneira como me é proposta pelo exame imediato; e só posso fazê-lo através de uma ação composta e firme como a que acabo de descrever: posso escolher a matéria e o momento; posso aproveitar a ocasião, interromper a obra e voltar a ela; nada me pressiona, pois minha vida não está interessada no resultado: ela só se aplica de uma maneira revogável e como que lateral; e se pode se consumir em um objeto tão distante de suas exigências é porque pode não fazê-lo. Ela é indispensável para o meu trabalho; ele não o é para ela.
Em suma, dentro dos limites de que falei: eu entendi esse objeto. Expliquei-o a mim mesmo por meio de um sistema de atos meus e, assim, esgotei meu problema: qualquer tentativa para ir mais adiante modifica-lo-ia essencialmente e levar-me-ia a escorregar da explicação da concha para a explicação de mim mesmo.


Consequentemente, ainda posso considerar até agora que essa concha é uma obra do homem.
Entretanto, um elemento das obras humanas está me faltando. Não vejo a menor utilidade desta coisa; ela não me faz pensar em qualquer necessidade que esteja satisfazendo. Ela me intrigou; ela distrai meus olhos e meus dedos; demoro-me olhando-a como escutaria uma ária musical; destino-a inconscientemente ao esquecimento pois recusamos distraidamente o futuro àquilo que não nos serve... E encontro apenas uma resposta para a pergunta que me vem ao espírito: Por que foi feito este objeto? Mas para o que serve, digo-me, aquilo que os artistas produzem? O que eles fazem pertence a uma espécie singular: nada o exige, nada de vital o prescreve. Isso absolutamente não provém de uma necessidade que, aliás, o determinaria inteiramente, e também não há a menor probabilidade de atribuí-lo ao "acaso".
Eu quis até agora ignorar a verdadeira produção das conchas; e arrazoei, ou desarrazoei, tentando manter-me o mais próximo possível dessa ignorância factícia.
Isso seria imitar o filósofo, esforçando-me a saber tão pouco sobre a origem bem conhecida de algo bem definido, como o sabemos sobre a origem do "mundo" e sobre o nascimento da "vida".
A filosofia não consiste, afinal, em fingir ignorar o que se sabe e saber o que se ignora? 
Ela duvida da existência; mas fala seriamente do "Universo"...
Se me detive muito tempo sobre o ato do homem que se resolvesse a fazer uma concha, é porque nunca se deve, na minha opinião, perder uma ocasião para comparar, com alguma precisão, nosso modo de fabricar com o trabalho do que se chama Natureza. Natureza, ou seja: a Producente ou a Produtriz. É a ela que atribuímos a produção de tudo o que não sabemos fazer, mas que nos parece feito. Existem, contudo, alguns casos particulares onde podemos concorrer com ela e atingir, por nossos próprios meios, o que ela obtém à sua maneira. Nós sabemos fazer com que corpos pesados voem ou naveguem, e sabemos construir algumas moléculas "orgânicas"...
Todo o resto, tudo o que não podemos atribuir ao homem pensante nem a essa Potência geradora, nós oferecemos ao "acaso", que é uma invenção de palavra excelente. É muito cômodo dispor de um nome que permita exprimir que uma coisa extraordinária (por si mesma ou por seus efeitos imediatos) é provocada exatamente como uma outra que não o é. Mas dizer que uma coisa é extraordinária é introduzir um homem, uma pessoa particularmente sensível a ela, que fornece todo o extraordinário do assunto. Se não tenho um bilhete de loteria, que me importa que este ou aquele número saia na urna? Não estou "sensibilizado" para este acontecimento. Não há qualquer acaso para mim no sorteio, nem qualquer contraste entre o modo uniforme de extração desses números e a diversidade das consequências. Eliminem então o homem e sua expectativa, e tudo acontece indistintamente, concha ou cascalho; mas o acaso nada faz - a não ser se fazer notar...
Mas, já é hora de parar de supor e voltar à certeza, ou seja, à superfície de experiência comum.
Uma concha emana de um molusco. Emanar parece-me o único termo próximo da realidade visto significar propriamente: deixar pender. Uma gruta emana suas estalactites; um molusco emana uma concha. Sobre o processo elementar dessa emanação, os cientistas nos dizem uma grande quantidade de coisas que viram nos microscópios. Acrescentam uma quantidade de outras coisas que não acredito que tenham visto; algumas são inconcebíveis, embora se possa discorrer muito pois é o que se precisa para mudar o que se quer no que se quer. Outras precisam aqui e ali de algum acidente bem favorável...
Aí está, segundo a ciência, o que solicita que o molusco retorça tão cientificamente o encantador objeto que me retém.
[...]
Quanto a mim, admito facilmente ignorar o que ignoro, e que todo saber verdadeiro se reduz a ver e poder [ver]. Se a hipótese é sedutora ou se a teoria é bela, deleito-me sem pensar na realidade...
Portanto, se nossas invenções intelectuais, às vezes ingênuas e frequentemente verbais, são negligenciadas, somos obrigados a reconhecer que nosso conhecimento das coisas da vida é insignificante perto daquele que temos do mundo inorgânico. Isto significa que nossos poderes sobre este último não são comparáveis aos que possuímos sobre o outro, pois não vejo qualquer outra medida de um conhecimento além da força real que ele confere. 
Eu sei apenas o que sei fazer.
Aliás, é estranho e digno de alguma atenção que, apesar de tantos trabalhos e meios maravilhosamente sutis, tenhamos até agora tão pouca influência sobre essa natureza viva que é a nossa. Olhando um pouco mais de perto, descobriremos sem dúvida que nosso espírito é desafiado por tudo o que nasce, produz-se e morre no planeta, porque ele está rigorosamente limitado, na sua representação das coisas, pela consciência que tem de seus meios de ação externa e do modo pelo qual essa ação procede dele, sem que precise conhecer o mecanismo.  
O tipo dessa ação é, pelo que sinto, o único modelo que possuímos para resolver um fenômeno em operações imaginárias e voluntárias que finalmente nos permitem ou reproduzir à vontade, ou prever, com boa aproximação, algum resultado. Tudo o que se distancia demais desse tipo recusa-se a nosso intelecto (o que é bem observado na física recente). Se tentamos ultrapassar os limites, imediatamente as contradições, as ilusões da linguagem, as falsificações sentimentais se multiplicam; e ocorre que essas produções míticas ocupam, e mesmo arrebatam, os espíritos por muito tempo.


O pequeno problema da concha é suficiente para ilustrar muito bem tudo isso e para esclarecer nossos limites. Já que o homem não é o autor desse objeto, e que o acaso não é responsável, é preciso inventar alguma coisa que denominamos Natureza viva. Só podemos defini-la através da diferença de seu trabalho em relação ao nosso: e é por isso que tive que falar um pouco sobre esse último. Eu disse que começamos nossas obras a partir de diversas liberdades: liberdade de matéria, mais ou menos ampla; liberdade de aspecto, liberdade de duração, sendo todas algo que parece proibido ao molusco - ser que só sabe a sua lição, com a qual sua própria existência se confunde. Sua obra, sem correções, sem reservas, sem retoques, por mais fantasista que nos pareça (a ponto de tomarmos emprestados alguns motivos para nossos enfeites), é uma fantasia que se repete indefinidamente; nós nem imaginamos que alguns originais entre os gastrópodes tenham à esquerda o que outros têm à direita. Entendemos ainda menos a que estão reagindo essas complicações extravagantes, em alguns; ou essas espinhas e essas manchas coloridas, às quais atribuímos vagamente alguma utilidade que nos escapa, sem sonhar que nossa ideia de útil não tem qualquer sentido fora do homem e de sua pequena esfera intelectual. Essas extravagâncias aumentam nossa dificuldade, pois uma máquina não comete tais desvios; um espírito os teria procurado com alguma intenção; o acaso teria igualado as chances. Nem máquina, nem intenção, nem acaso... Todos os nossos meios são excluídos. Máquina e acaso, são esses os dois métodos de nosso físico; quanto à intenção, ela só pode intervir quando o próprio homem está em jogo, explícita ou disfarçadamente.
Mas a fabricação da concha é coisa vivida e não feita; nada existe de mais oposto ao nosso ato articulado, precedido por um fim e agindo como causa.
[...]
Mas, talvez, haja aqui uma dificuldade essencial - quero dizer: quem é responsável pela natureza de nossos sentidos e de nosso espírito?
Observamos que, para representar essa formação, seria preciso antes eliminar um primeiro obstáculo, o de renunciar imediatamente à conformidade profunda de nossa representação. Não podemos, na verdade, imaginar uma progressão bastante lenta para provocar o resultado sensível de uma modificação insensível, nós, que nem percebemos nosso próprio crescimento. Só podemos imaginar o processo vivo comunicando-lhe um comportamento que nos pertence e que é inteiramente independente do que se passa no ser observado...
O trabalho interno de construção, é misteriosamente ordenado...
Nossos artistas absolutamente não tiram de sua substância [como a ostra] a matéria de suas obras e só obtêm a forma que procuram através de uma aplicação particular do espírito, separável do conjunto do seu ser. Talvez o que denominamos perfeição na arte (que nem todos procuram, e muitos desdenham) seja apenas o sentimento de desejar ou de encontrar na obra humana essa certeza na execução, essa necessidade de origem interna e essa ligação indissolúvel e recíproca da figura com a matéria que me é mostrada pela mais ínfima concha.
...
Mas não estamos, nós mesmos, ocupados ora com o "mundo dos corpos", ora com o dos "espíritos"; e nossa filosofia não está eternamente em busca da fórmula que absorveria sua diferença e que comporia duas diversidade, dois "tempos", dois modos de transformação, dois gêneros de "forças", duas tabelas de plantões que se mostram, até aqui, mais distintos, embora mais enredados, à medida que os observamos com mais atenção?
Em uma ordem de fatos mais imediata, e sem a menor metafísica, não constatamos estar vivendo familiarmente no meio das variedades incomparáveis de nossos sentidos; acomodados, por exemplo, a um mundo da visão e a um mundo da audição, que em nada se parecem e que nos ofereceriam, se pensarmos nisso, a impressão contínua de uma perfeita incoerência? Dizemos que está suprimida e como que dissolvida pelo uso e pelo hábito, e que tudo concorda com uma única "realidade"... Mas isso não é dizer grande coisa.


Vou jogar minha descoberta como se joga um cigarro consumido. Essa concha me serviu, excitando a cada volta o que sou, o que sei, o que ignoro... Como Hamlet, pegando um crânio na lama e aproximando-o de seu rosto vivo, contempla-se horrivelmente, de alguma forma, e quase entra em sua meditação sem saída, cercada por todos os lados por um círculo de estupor, da mesma maneira, sob o olhar humano, esse pequeno corpo calcário, oco e espiral convoca ao seu redor uma grande quantidade de pensamentos, sendo que nenhum desses acaba...

Paul Valéry - Variedades, 2007

"Mais vale a ação que faz do que a coisa feita"    

    


  

Filme - Um doce olhar




Direção de Kaplanoglu, 2010.
Um filme com foco em instantes expandidos e poucos diálogos.
Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlin 2010.

Ao contrário dos filmes que se passam em cidades grandes como Istambul, Um Doce Olhar nos transporta para uma região montanhosa com paisagens de tirar o fôlego, em meio a uma comunidade tradicional, onde é impossível definir em que década se passa a história. Lá acompanhamos a vida do garoto Yusuf, de seis anos, ao lado de seu pai apicultor Yakup e sua mãe lavradora Zehra.




Yusuf tem uma certa resistência à mãe, que não o trata de maneira dura, mas é quem o força a tomar leite e fazer o dever de casa, o suficiente para que qualquer criança de 6 anos a trate com respeito, mas o contato é simplesmente o necessário. Já o pai do menino é cúmplice e confidente. Um dos segredos que eles guardam são em relação aos sonhos de Yusuf, que ele só conta para o seu pai em forma de sussurro. A química entre os dois é inegável, mesmo quando ambos vão para o meio da floresta retirar o mel das colméias. Na escola, Yusuf quer ganhar o broche de mérito para dar orgulho ao pai, mas ele tem problemas com timidez e ansiedade que o impedem de ler os textos em voz alta. Esses pequenos dramas permeiam a sua vida, até que seu pai demora demais a voltar de uma viagem para procurar mel em territórios distantes e Yusuf se dá conta de que existem dificuldades bem maiores ao seu redor, no mundo que o espera.
Um Doce Olhar é o típico filme de festival, lento, contemplativo, econômico. Praticamente não há trilha sonora que não seja o barulho do vento batendo nas árvores, a água da chuva nos telhados ou passos do menino andando pela lama no seu caminho para a escola. Poucos também são os movimentos de câmera, que prefere se manter parada pegando o cenário real.
O trecho da história sobre o veleiro feito por seu pai é de extrema poesia. O ciúmes de Yusuf e depois o arrependimento em relação aos seu errôneos pensamentos.



Trata-se de uma trilogia. O título original do filme, "Bal", quer dizer "Mel". Os outros dois longas são "Yumurta" ("Ovo"), de 2007, e "Sut", ("Leite"), de 2008 - ambos inéditos em circuito comercial no Brasil, mas exibidos em festivais, como a Mostra Internacional de São Paulo.
Mesmo desejando continuar na noite de Yusuf e acordar com ele em meio à floresta, afirmo que gostei muito do filme. Mostra uma conexão entre as mais diversas formas de vida.

Filme - Io Non Ho Paura

Um filme de Gabriele Salvatoris com Aitana Sánchez-Gijón; 2003.
Baseado no romance de Niccólo Ammaniti. 
Eu Não Tenho Medo participou da seleção Oficial do Festival de Berlim 2003 e recebeu indicação ao European Film Awards de Melhor Fotografia.


1978. O verão mais quente do século. Num pequeno vilarejo rodeado por campos de trigo localizado no quente Sul da Itália, a mais extraordinária história sobre aventuras, descobertas, amizade e tragédia. Enquanto os adultos conversam a portas fechadas, seis crianças se aventuram pelos campos de trigo desertos com suas bicicletas. Escondido no milharal, Michelle de nove anos encontra um segredo tão grave e tão terrível que ele decide não contar a ninguém. Para enfrentá-lo, ele vai precisar do poder de sua imaginação e da coragem que ele ainda não sabe que tem. "Vocês, aranhas peludas; vocês, verbascos, lesmas gosmentas e cobras-de-vidro cegas, fiquem longe das nossas crianças. Vocês, animais noturnos, amantes da escuridão, vocês, que não dormem senão de manhã, velem o sono deste menino". 
Em resumo, um vilarejo bem pobre é cúmplice de um sequestro e a agonia do menino em cativeiro só é aliviada por essa singela amizade que fez com outro menino da vila (também com dez anos). Fantástico. O desfecho da trama lembra muito a historia de "O Menino do Pijama Listrado".


Um suspense encantador que por vezes traz aflição, mas que, ao fim, eis a beleza de um conto que termina em seu exato ápice. 


Vale a pena este momento!

Pour le moment...

Le Chevelu Abîme
Técnica mista, março de 2012



Le Affligeant
Técnica mista, abril de 2012


Quelqu'un Étranger
Técnica mista, abril de 2012


Petites Paillasses Prisonnier 
Técnica mista, abril de 2012


La Beauté Dans Le Ciel Vide 
Técnica mista, abril de 2012


Le Moribond Délirant
Técnica mista, abril de 2012


Moi-même en Frida Kahlo 
Técnica mista, abril de 2012


La Essence Exotique
Cerâmica, acrílico e pedrarias, 2012


La Danseuse Souhaiter
Cerâmica, acrílico, 2012


La Danseuse Déçu
Cerâmica, acrílico, 2012

Criar

Tem vezes em que lemos e nos encontramos em palavras de outros. Pensamentos que já estavam lá, mas que alguém encontrou a melhor forma de expressá-los.
Como o que acabei de ler em Lya Luft. 
Sobretudo, escrevo porque essa busca de sentido que imprime em nós sua marca desde o primeiro instante: esse tatear como num fundo d'água onde nossos dedos deparam com um rosto, sim, este me poderá entender, sim, por aqui vai o meu destino... Mas as dissonâncias se sobrepõem, e no fundo de cada um de nós existe o medo, a inquietação, a consciência da morte, do talvez nada. De outro lado, muitas vezes prevalece a solidariedade, o entendimento, a generosidade interior: podemos não ser amargos, podemos não ficar isolados, podemos nos humanizar mais. E disso também falamos, nós os escritores.


Já a citação de Blanchot me fez pensar na escultura.
O erro e o fato de se estar a caminho sem jamais poder parar transformam o finito em infinito. Ao que se acrescentam estes traços especiais: apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão; do mesmo modo que todo o lugar absolutamente sem saída se torna infinito. O lugar do descaminho ignora a linha reta; nunca se vai de um ponto a outro ponto; não se parte daqui para chegar ali; nenhum ponto de partida e nenhum começo para a caminhada. Antes de se ter começado, já se começa a recomeçar; antes de se ter terminado, repisa-se; esta espécie de absurdo que consiste em regressar sem nunca ter partido, ou em começar por recomeçar, é o segredo da "má" eternidade, correspondente à "má" infinitude, e talvez uma e outra encerrem o sentido do devir. 


"Ela olha o vazio, diz Stein. É a única coisa que olha, mas bem.
                                              Ela olha bem o vazio".
                                                 (Marguerite Duras)


Faço paródia a Duras:


Fazer arte.
Não posso.
É preciso.
Alguém faz?
Não se pode. 
Ela já está aí.
E se faz.
É o desconhecido que trazemos conosco: buscar essa expressão, é isto o que se alcança. 
Isto ou nada.
"Ravissement" continua sendo um enigma.

Alagoas


Praia de São Miguel dos Milagres
(água quente e limpa)