Muito bom...


  • SENHORA
  • Analisando bem, o seu problema pode estar no sapato. Verifique isso. Talvez ele não lhe aperte o pé, mas, com certeza, o salto de seu sapato é muito alto, e isso tende a desestabilizá-la. Pessoas como a senhora, apesar de sua inteligência, charme e escolaridade, por vezes não podem ver uma coisa tão simples como essa, a menos que se disponham a colocar-se de lado e observar a altura do salto do sapato em frente ao mesmo espelho que reflete ainda a beleza de sua juventude. A senhora, sim, é jovem, é bonita, além de competente e bem intencionada, quero crer. Mas o seu problema é o salto. Ele é alto, ele é desproporcional aos nossos olhos que não descolam deste detalhe enquanto a senhora fala meneando a cabeça em garbosos gestos que ninguém vê – ou não gosta de ver. E assim, a tudo que possa a senhora querer dizer, as pessoas não dão importância, ou não entendem, porque ficam fixadas na altura do salto de seu sapato, dispersando a atenção que deveriam dar-lhe. Saiba, senhora - se me permite dizê-lo -, a gente daqui é muito simples, algumas até preconceituosas em relação a estrangeiros, o que em nada é louvável – suponho -, mas, ainda assim, a gente daqui sente um certo orgulho de suas façanhas que servem de modelo a toda a terra, tirante esses últimos acontecimentos que têm assolado a nossa honra. Se pudesse dar-lhe um conselho sincero e amigo, eu diria à senhora para calçar outro tipo de sapato. Talvez não lhe parecesse tão elegante à primeira vista, assim que a senhora se mirasse no espelho, mas tal providência, ao aparentemente diminuir sua estatura física, aumentaria a humana, colocando-a no mesmo nível de nossos olhos, assim como gostaríamos de falar com nossos interlocutores, isto é, sem termos de elevar a cabeça como se a eleva ao bom Deus que – seja Ele qual for –, não pertence a este reino da Província de São Pedro. Faça o teste, senhora, e verá que posso ter alguma razão no que lhe escrevo. A senhora então sentirá um certo alívio, parecerá navegar nas nuvens, estará bem mais confortável, tudo sorrirá à sua volta. Os inimigos passarão a respeitá-la, ao invés de tão somente criticá-la. Os amigos serão mais amigos, e os falsos cessarão o fogo-amigo. Faça o teste, senhora, um sapato com salto mais baixo – providência tão simples - lhe fará muito bem. Respeitosamente, o seu sapateiro.
    Paulo C. Amaral
    Artista plástico e escritor

    Um poema



    Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,

    Espécie de acessório ou sobressalente próprio,

    Arredores irregulares da minha emoção sincera,

    Sou eu aqui em mim, sou eu.

    Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.

    Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.

    Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

    E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,

    Como de um sonho formado sobre realidades mistas,

    De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,

    Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

    E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,

    Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,

    De haver melhor em mim do que eu.

    Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,

    Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,

    De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,

    De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,

    De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

    Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,

    Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,

    De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —

    A impressão de pão com manteiga e brinquedos

    De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,

    De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,

    Num ver chover com som lá fora

    E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

    Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,

    O emissário sem carta nem credenciais,

    O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,

    A quem tinem as campainhas da cabeça

    Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

    Sou eu mesmo, a charada sincopada

    Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

    Sou eu mesmo, que remédio! ...


    Álvaro de Campos