A esperança como modeladora do ser

O que torna os seres humanos ímpares no reino animal é a potência do pensar.

Cada indivíduo se constitui a partir de seus propósitos. Por meio de uma rede extensa de unidades formadoras do ser desenvolve-se uma existência. Um viver que não é só para si, mas que se configura e se reagrupa com seus demais semelhantes.

Espera-se que toda a vida alcance significados, valores, virtudes. Saber a extensão desses termos implica a existência de um conceito. Desejar algo, parte da premissa da existência de um deleite futuro. Essa satisfação pode partir de um instante já vivido através de uma experiência ou de uma idéia de prazer oriunda, muitas vezes, de exemplos externos.

Existe uma falta; um desejo pelo novo; uma ânsia de mudança e de preenchimento. E, dia após dia, almeja-se a um devir feliz. Um vislumbre ao horizonte. Será que, sozinhos, é possível desvelar o valor das decisões?

Partindo das concepções de Ernst Bloch e Friedrich Nietzsche podemos traçar algumas relações que podem servir como um alerta ao momento contemporâneo. Ambos partem de uma mesma suposição: há os indivíduos que criam e os indivíduos que copiam.

Viver no presente é um permanente estado de atenção aos rumos do futuro. De acordo com as idéias de Heidegger em seu livro “Ser e Tempo”, o homem é constituído por um entrelaçamento entre passado, presente e futuro. O passado da experiência, ou dos sonhos, do que foi e do que poderia ter sido. Um tempo decorrido que grita e ecoa para os caminhos de um futuro. Cresce o desejo de não repetir certas escolhas, frustração pelo caminho seguido ou o êxito do bem viver. A constante avaliação é que dá as ordens ao trajeto.

Para Ernst Bloch os indivíduos são consumidos por sonhos diurnos. Sonhos esses que podem ser apenas uma fuga instantânea do presente ou ainda, uma forma de alerta que aponta para o precário que se apresenta.

Um olhar sóbrio sobre o presente instiga o pensar e traz à tona os fantasmas que perturbam e indagam sobre os rumos de uma escolha.

“Pensar significa transpor”, com esta frase Bloch reafirma a potência do pensar, mas é importante distinguir as dimensões dessa explanação. Este ato seria um primeiro passo em busca de um conhecimento seguro, mas é ainda mais importante rever a consistência desse pensar. Se o futuro contém o temido ou o esperado, seria bem mais fácil transpor a dor ou a perturbação em detrimento de algo positivo, sabendo que com isso pode-se atingir a um

novo estado de coisas. Como Nietzsche mencionou, existem dois tipos de sofrimento. O sofrimento causado pela insatisfação do caminho escolhido ou o sofrimento que leva a um patamar superior da existência. Para Nietzsche, preservar a vida que se esvai é fazer rebrilhar o presente na luz de futuros significados. Para isso, ser o senhor de suas virtudes deve ser o primeiro projeto. Mas essa é uma tarefa extremamente difícil. Transpor estruturas sólidas como o conceito de moral, pode exigir muito de um indivíduo. Estar dentro de uma comunidade demanda seguir as regras assumidas pelo grupo. A fuga de determinados preceitos pode acarretar um abalo estrutural que poderá culminar ou na exclusão do erudito ou no seu êxito.

Dar o exemplo através de uma ousadia positiva é questionar o sistema.

Seria muito importante para as identidades encontrar o que lhe é peculiar enquanto indivíduo, não o que se pensa ou consome enquanto sujeito globalizado. São teses profundas, de raízes extensas. Para começar, seria preciso realizar um intensivo esforço para controverter o conceito de moral. Princípio este, visto como antagônico à virtude segundo Nietzsche. A moral pode advir de diferentes preceitos, tais como a tradição, o sintoma da culpa, o tempo, eventos históricos, costumes, preconceitos. Dessa forma, a existência de um conjunto de regras de conduta acaba por moldar ao homem de acordo com princípios que, muitas vezes, é de interesse de outra natureza que não o da grandeza particular. Através de um olhar mais atento sobre a própria existência é possível transvalorar o conceito de moral e partir para um caminho em que a vontade particular, e somente ela, poderá cumprir a promessa feita para si mesmo. É a consciência que fornece a noção do valor e da medida de todas as coisas. Essa consciência é uma categoria particular e deve ser pensada assim para que um ato adquira originalidade. Contudo há os empecilhos que atravancam o caminho. Para Ernst Bloch subsistem dois fatores negativos que interferem em uma escolha: o medo e o niilismo. O medo visto como uma máscara subjetiva e o niilismo, como uma máscara objetiva do fenômeno da crise. “Fenômeno suportado, mas não compreendido; lamentado, mas não removido”. Nesse estado de crise, o sujeito busca contornos, que freqüentemente não é o da mudança, mas o da resignação, atribuindo essa falta como uma questão inerente ao homem e, dessa forma, algo que se precisa suportar.

Pensar, tomar consciência dos limites é rever o que ou quais questões possuem um alicerce seguro. Vive-se em comunidade. Diariamente o contato com o outro, com a mídia, com o mundo, vão gerando uma esfera global que contém os pressupostos ou elementos que são formadores de conceitos. A atenção é saber qual o papel do individual nesse contexto e o que é efetivamente importante para cada personalidade.

O homem é constituído e modelado por aquilo que ele acredita. Sendo assim, ele alcança significado conforme o seu grau de esperança. Uma esperança vista como possibilidade de mudança, de crença no ser.

Ernst Bloch profere algo que toca bem na ferida da tese aqui desenvolvida. Mesmo que não sobrevenha uma solução que desvende e reafirme a potência da esperança no devir de uma vivência, a palavra já possui um imenso poder de transformação. Pensar sobre esse tema já é uma forma de retorquir uma realidade. Se um desejo não consegue se manifestar nem mesmo como palavra, menos ainda enquanto conceito. O que realmente é importante é investigar o conteúdo e a função desse desejo que pulsa em todo o homem . É o uso do saber consciente como ferramenta de decisão.

Eis a importância da filosofia como uma disciplina de investigação.

É nesse ponto que inserimos Nietzsche como um filósofo que apresenta a esperança como uma intensificadora do ser. É a afirmação do sujeito enquanto senhor de suas escolhas. Nada sabemos sobre a verdadeira realidade existente, mas temos a obrigação de buscar o maior esclarecimento possível. Dar sentido à vida é, por vezes, galgar caminhos tortuosos. A diferença é que faz cada indivíduo ser único e importante, se não dentro de um meio, mais ainda (e mais importante), para si próprio. Para Nietzsche, todo o percurso de um indivíduo pode tornar-se algo inaudito: a vida, o conhecimento, o mundo – afinal tudo é elemento de formação. Para isso, é preciso um espírito vigilante. Todos os movimentos, aspirações e ações devem ser iluminados com a luz da atenção. Ainda conforme Nietzsche, a vida deve ser vista como uma grande obra. Podemos nos distanciar tanto de nossa própria vida que ela se congele num quadro, tornando-se uma obra moldada por esse artista que podemos vir a ser. Já Ernst Bloch coloca a depuração como elemento de mudança. A esperança sabedora é aquela capaz de irromper contra o medo, a que provoca a interrupção causal de um conteúdo.

Dentro desse contexto, sobressai o valor da esperança como método a evitar a sobrevinda de um pensamento niilista, da total falta de expectativa. Isso reduziria os indivíduos a simples elementos de uma composição. Integrantes de uma realidade a qual é vista como predestinada e nada parece fazer sentido. O pensamento de Nietzsche e Bloch abrange a uma vasta variedade de temas. Em relação a erudição, ambos deixam uma indicação importante a elevação humana - acreditar na arte como elemento redentor. Ela é capaz de pungir, tocar o sensível. São essas explosões, os choques, que sacodem a ordem de uma vida. É isso que a arte é, entre outras possibilidades: um corte, um ato capaz de abrir uma fenda, sacudir os limites. Não apenas a arte, também tudo aquilo que toca, que balança, que faz emergir o sensível, faz a mudança. A arte nos impede de perder a consciência no individual. Um olhar detalhado e profundo sobre a vida e as nuances que a preenchem, faz replicar o sentido e ressalta a poesia.

Do desejo apaixonado do homem de volver a sua essência é que desabrocha as faculdades capazes de reafirmar a soberania do “eu” em meio a multiplicidade.

(Lisiane Carvalho Konzen)



(Escultura e foto de LCK)